quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

No banco com Pietro


E subitamente, a sua mulher desaparece, numa morte não anunciada. Passado o choque da surpresa amarga fica o vazio, desconcertante, e uma filha de 10 anos que pede cuidados redobrados, numa atenção que visa atenuar de alguma forma a perda da mãe.

A partir do momento do acidente, Pietro, agora pai e mãe de Cláudia, descura o emprego de sucesso, alheia-se, perde-se na dor que por vezes duvida que verdadeiramente sente, e centra a sua atenção na filha. Sem plano prévio vai-se deixando ficar sentado num banco de jardim em frente à escola de Cláudia, onde passa os dias. Devagar e sem pressas, o seu mundo é totalmente transferido para estes escassos metros quadrados sob o verde, por onde passam, rotineiramente, algumas personagens que habitam aquele espaço e que com ele vão criando laços: uma mãe que traz pela mão um filho deficiente mental que se habitua a um inofensivo jogo com o carro de Pietro; uma rapariga loura e bonita que todos os dias passeia o cão no jardim; o dono do pequeno café onde Pietro passa a almoçar; a professora de Cláudia que o vai pondo ao corrente da evolução da filha na escola...

Por este banco de jardim vão desfilando todas as outras personagens da vida de Pietro, do irmão à cunhada, passando pelos colegas de trabalho que o visitam no seu novo "escritório" para desabafar, e terminando numa estranha mulher que ele salvou de morrer afogada numa praia e que cruzou uma vez mais a sua vida com a do protagonista da história.

Caos calmo, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance de Sandro Veronesi. Na senda de O quarto do filho, Nanni Moretti disserta uma vez mais sobre a dor da perda e sobre as mudanças que essa perda pode acarretar. Neste caso, um caos calmo, já que aparentemente muito controlado e sem lágrimas, quase levantando a suspeita de uma ausência de sofrimento. Esta pausa que acaba por fazer no seu quotidiano permite-lhe a reflexão e um olhar sobre os pequenos nadas e sobre o seu passado. Uma caminhada na descoberta dos outros.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Paninhos quentes de paixão...

(foto tirada numa montra de Braga - Paula Crespo)


Passou a agulha pelo pano fazendo correr a linha vermelha, rematou e cortou. Pronto, mais um, pensou. Alisou o pequeno pano transformado em lenço, dobrou-o, voltou a dobrar. Pousou-o no cesto de verga que permanecia a seus pés, junto dos outros cinco que já tinha bordado e dobrado e guardou no cesto. Meia-dúzia certinha, como a Maria Júlia me pediu, contou ela para si.

Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…

Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…

A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.

Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Uma força tamanha

(Foto da Internet)

Um xaile e uma guitarra. É assim que Amália definiu, num momento, o que cantava.

Amália, o Filme, de Carlos Coelho da Silva, é uma biografia ficcionada, uma adaptação livre da vida da diva. Mas, e recorrendo ao povo, tão glosado no fado e por ela, onde há fumo há fogo. Desta feita, a selecção dos momentos vividos, se bem que obviamente discricionária, pretende ilustrar os pontos-chave da sua carreira e da sua vida pessoal e caracterizar o seu carácter.

O filme inicia-se numa linguagem contrária à do neo-realismo cinematográfico, ao pintar em tons suaves os cenários de uma pobreza branquinha e a cheirar a lavado, que carrega nos clichés de forma tão forte que quase torna irreal as suas cenas, mais parecendo uma pobreza à Estado Novo, de tão limpinha que se apresenta. Mas, ultrapassada esta fase da infância da fadista, e centrando-me em aspectos que considero mais marcantes no filme, saliente-se a cena de abertura, em 1984, com uma Amália de 64 anos, em Nova Iorque, completamente desesperada e tão cheia de amargura que ensaia um suicídio, absolutamente dramático. Uma cena de uma plasticidade bonita, a que se sobrepõem planos em flashes de memórias antigas, todas elas também dramáticas ou traumatizantes e que, de alguma forma, contribuiriam para as tendências suicidas da artista. Aliás, esta cena de Nova Iorque é recorrente ao longo do filme, com um telefone que toca e não responde, oferecendo um clima tenso e trágico e que, só no final, se revela feliz.

Mas, mais do que os aspectos cinematográficos propriamente ditos, com uma excelente composição da actriz principal e óptimas interpretações dos restantes actores, salienta-se o carácter impetuoso e vincado de Amália; os seus desamores e a busca incessante em ser feliz; o amor pela família e as desventuras; os relacionamentos com pessoas ligadas à política, designadamente à Oposição, bem como alguma complacência com a figura de Salazar, sem se identificar muito com qualquer ideal político mas sempre pronta a abraçar as pessoas e a causa humana. E, uma vez mais, a voz. Única, sentida e inconfundível. Que não era produzida pelas cordas vocais mas sim nascida das entranhas. Uma voz de uma força tamanha. Eterna, sem dúvida.


Com que voz – Amália Rodrigues

domingo, 7 de dezembro de 2008

Regresso ao passado...

"Regresso ao passado" - foto José Neves


Reformadas. Repousam arrumadas neste presente silencioso, tão diferente da agitação de outrora. As carruagens.

Também ele reformado, cansado de já não o poder estar, apanha este comboio num derradeiro regresso ao passado, atrelando a si os netos que brincam, sem viajar. Porque a viagem é só dele, pertence-lhe, como lhe pertencem as memórias que lhe vão surgindo ao fitar o fumo deste vapor.

“Para onde vais tu, José?” – “ Vou fugir. Vou para longe… para trás…”



O desafio foi-me lançado por José Neves. Chegou há pouco, pelo correio, e convidava-me para escrever sobre a sua foto, aliás muito sugestiva. Escrevinhei assim sobre o que vi, num olhar que se juntou ao inicial, ao da foto do autor.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Performance de mestre


"Star Wars" - an a cappella tribute to John Williams

Esta minha veia ligada à música voltou a sangrar ao ver e ouvir o que se segue. Para estancar a hemorragia o remédio consiste em apreciar com atenção, apesar de ser um bocadinho longo. Mas merece e vão ver que não dói nada.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A espera...

(Imagem da Internet)

Sabia-a nervosa, miudinha nos pequenos gestos que desenhava em torno de si mesma. Adivinhava-a roendo a unha do polegar direito, compondo a saia, balançando o pé. Sentia-a cada vez mais apressada, num compasso curto e pequenino, num tique-taque de relógio Swatch com o barulhinho irritante do tempo sempre igual.

Não a podia ver mas sabia que lá estava. Sabia também que, passada uma hora, por aí, se cansaria de esperar e sairia irritada pelo tempo gasto em vão. Pressentia que fosse recuperar esse tempo no centro comercial que ficava a 3 km apenas, que começaria pelo café engolido em seco e que afundaria as mágoas na montra daquela loja pequenina entalada entre a florista e a outra dos brinquedos.

Tinha a certeza que voltaria mais tarde, à noite, reatando a espera, encolhendo-se no sofá com o portátil nos joelhos. Conversas interrompidas, meias-palavras, pausas forçadas. De tudo um pouco era composto o seu tempo, esquecido de viver para se alongar neste ritmo morno, de cores pálidas.

Sabia-o ela também, mas teimava em esquecer. Porque esquecer era teimar em viver, esse tempo virtual e de espera mas que lhe alimentava a ilusão.

Observava-a um, por fora; sentia-se ela, por dentro. Um só tempo, duas visões. O mesmo final.
Num momento que não foi o mesmo, desligaram o botão e foram dormir.

sábado, 29 de novembro de 2008

Silêncios...

Como diria ela, “não é mandatório”. Pois não. Nem obrigatório, sequer, que isto na língua materna soa mais reduzido, menos rigoroso, com menos… afinco?!, indagaria ele, se coragem tivesse, com um sorriso irónico a bailar-lhe nos olhos. Um sorriso daqueles que traem qualquer tentativa desajeitada de parecer interessado nas suas palavras, de aderir às ideias que lhe saltam da boca num stress de hora de ponta.

Ajeita o cabelo, cruza e descruza as pernas que terminam num modelo fashion e não pára. Não pára de verbalizar opiniões sobre tudo e coisa alguma, com a segurança de quem acabou de travar conhecimento com algumas delas e a quem já trata por “tu”, numa descontracção de velhas amigas. Ele sorri para dentro e continua a ouvi-la, escutando-a intermitentemente, vagueando de mansinho por outros destinos que a memória lhe vai servindo em pequenas doses.

“Não achas?”, ouviu-a. Ao longe, num eco, com arestas nas palavras. “Hum? Sim… acho…”. Não achava. Estava demasiado morno para achar o que quer que fosse, num torpor distante do qual não lhe apetecia sair tão depressa e enfrentar o que ela achava. Voltou-se, serviu-se num copo alto e perdeu o olhar no rio que o chamava ao longe, com aquela luz de fim de tarde por quem se apaixonara.

“Qualquer dia vou navegar e entro nela”, pensou. Nessa luz com nome que guarda só para si, por não interessar a quem acha muitas coisas que lhe são distantes. Qualquer dia…

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Divagações da memória...

Por um estranho labor dos fusíveis do pensamento, como que num flashe, veio-me à memória uma peça que vi no Teatro Aberto, em 2006, Os sete dias de Simão Labrosse. Uma peça que adorei, pelas interpretações e pelo texto e que me marcou definitivamente, quer pelos bons motivos já invocados, quer pelos maus, como uma errada reacção de algum do público presente, que parecia não compreender a profundidade dos diálogos que lhes entrava pelos ouvidos e que vagueava com muita dificuldade até ao cérebro. E como os actores se superavam em impossíveis, ao não saltar para a triste realidade desta plateia que os observava no vazio das gargalhadas estridentes e ocas, e a abanar, numa tentativa, por certo inglória, de a acordar do torpor da suposta comédia que teimava em assistir...

Esta peça falava-nos de um homem, Simão Labrosse, que, numa luta para sobreviver e para preencher o vazio da sua existência, inventava um novo emprego a cada dia da semana, dias esses que, metaforicamente, simbolizavam a sua vida. Assim, Labrosse candidatava-se às tarefas mais abstractas e inverosímeis, como: duplo emocional, acabador de frases, adulador do ego, aliviador de consciência e apaixonado à distância. Uma espécie de dama de companhia da solidão de cada um, numa busca desesperada para ser feliz e ser útil aos outros, assim entendi eu.

Devo confessar que de vez em quando os meus fusíveis faíscam neste sentido, lembrando imagens ou curtos diálogos da peça. Marcantes, sem dúvida, pela beleza da alegoria. Como, por exemplo, uma estranha personagem que a minha memória já dificilmente encaixa na narrativa, mas que deixou de herança o facto de, pouco menos que muda e assustada, nunca dizer nada pela positiva, iniciando os seus parcos diálogos com um Não ou um Nada ou um Nunca.

Apagado o clarão da memória, desligado o interruptor, tudo volta à normalidade do presente. Foram-se embora as imagens de Labrosse e da sua luta para ser feliz. Até ao próximo levantar do véu...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

With a little help from my friends...

Em jeito de desabafo. Ou de recompensa. Ou, ainda, e muito mais isto, em jeito de agradecimento.

Hoje recebi várias manifestações de amizade, de ternura mesmo, que fizeram o dia merecer-se e que me puseram sorrisos no rosto. Sorrisos plasmados, daqueles que doiem um bocadinho quando se desfazem, pois estiveram cá o tempo suficiente para que tal acontecesse.

Por isto, veio-me à memória a velhinha canção dos Beatles que aqui vos deixo, com a letra a passar em rodapé, assim em jeito de karaoke...

With a little help from my friends. Always...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sorrisos amarelos...

(imagem da Internet)


Aterrou no meu mail e fala por si. Seria cómico se não fosse trágico.

Texto (verídico) retirado de uma prova livre de Língua Portuguesa, realizada por um aluno do 9º ano, numa Escola Secundária das Caldas da Rainha

REDAXÃO
'O PIPOL E A ESCOLA'
Eu axo q os alunos n devem d xumbar qd n vam á escola. Pq o aluno tb tem Direitos e se n vai á escola latrá os seus motivos pq isto tb é perciso ver q á razões qd um aluno não vai á escola.

Primeiros a peçoa n se sente motivada Pq axa q a escola e a iducação estam uma beca sobre alurizadas.


Valáver, o q é q intereça a um bacano se o quelima de trásosmontes é munto Montanhoso? Ou se a ecuação é exdruxula ou alcalina? Ou cuantas estrofes tem Um cuadrado? Ou se um angulo é paleolitico ou espongiforme? Hã?


E ópois os setores ainda xutam preguntas parvas tipo cuantos cantos tem 'os Lesiades''s, q é um livro xato e q n foi escrevido c/ palavras normais mas q no Aspequeto é como outro qq e só pode ter 4 cantos comós outros, daaaah.


Ás veses o pipol ainda tenta tar cos abanos em on, mas os bitaites dos profes até dam gomitos e a Malta re-sentesse, outro dia um arrotou q os jovens n tem Abitos de leitura e q a Malta n sabemos ler nem escrever e a sorte do gimbras Foi q ele h-xoce bué da rapido e só o 'garra de lin-chao' é q conceguiu Assertar lhe com um sapato. Atão agora aviamos de ler tudo qt é livro desde o Camóes até á idade média e por aí fora, qués ver???


O pipol tem é q aprender cenas q intressam como na minha escola q á um curço De otelaria e a Malta aprendemos a faser lã pereias e ovos mois e piças de Xicolate q são assim tipo as pecialidades da rejião e ópois pudemos ganhar um Gravetame do camandro. Ah poizé. Tarei a inzajerar?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quando o agora chegar...

(imagem da Internet)


“O que queres ser quando fores grande?”, perguntavam-lhe.

O que quero eu ser quando… Não sabia. Ideias soltas aproximavam-se do seu pensamento, de mansinho, pé-ante-pé, rondavam para depois saírem, sem fazer barulho. Iam e vinham mas não se demoravam, como se sentissem frio e, desconfortáveis, voltassem as costas para procurarem outros agasalhos.

O que quero eu ser quando… Tinha de saber mas não sabia. Sabia apenas que não queria ser isto, nem aquilo. Que bocejava só de pensar em. Sabia que, se fosse isso, talvez gostasse…

Passou tempo e mais tempo. E tempo ainda. Foi o que pôde e cedo. Fez isto e aquilo e mais do mesmo. Esforçou-se. Passou as etapas previstas, acumulou tarefas e desempenhos. Foi sendo, naturalmente, em lume brando.

Tudo o resto que queria ser, descoberto devagar, foi-o sendo divagando, sonhado, como que um prazer imaginado e sussurrado, para dentro. Um corpo que ganha forma e cresce, mesmo que depois desapareça como um cigarro saboreado sem pressa.

O que queres ser quando fores grande? O que queres ser quando o agora chegar, pensou.
Talvez isto.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Alegoria da vírgula e do ponto

(imagem da Internet)

Corriam os dedos no teclado, soltos, apressados, estouvados até. Corriam velozes, que o tempo passa depressa e a manhã já soa, pianinho, num sussurro, até que se lhe adivinha a voz ganhando corpo, escurecendo, crescendo para o dia, firme, madura.
Corriam os dedos, semeando letrinhas bambas, amedrontadas, daquelas que ninguém dá nada por elas, nadinha mesmo. Trémulas, agarram-se umas às outras até que, ganhando coragem, seguem de peito feito e nariz empinado, num corpo de palavras que contam histórias.


A vírgula entrou por ali dentro, acompanhada de manas e primas, todas iguais, todas sem jeito, borbulhentas e rechonchudas. Instalaram-se, sentaram-se bem perto umas das outras, numa algazarra de galinheiro, ora cochichando, ora elevando a voz, estridente e desarticulada. Risinhos rosa choque ecoavam por todo o texto, nervosos, num sem jeito imaturo de quem não sabe bem ao que veio.
– “Porque viemos, prima?”, indaga a mais nova, de olhos abertos, brancos, sem fito.
- “Ora, Tininha”, responde a outra, “viemos ao costume: semear a confusão neste reino de letras. É a nossa voz, as nossas razões que queremos fazer valer. Estamos fartas que nos tomem por tolas, por inúteis”.
E continuou chilreando em redor, atirando ao ar pequenas razões, “por isto, por aquilo”, na certeza de reinar sem medo num mundo de letras trémulas.


“Puro engano de quem não sabe onde pisa”, deu por si a pensar o ponto, observando-as do fundo da sala. Velho matreiro, tarimbeiro de muitas lides no teclado e no papel, onde outrora a tinta era sua companheira. “Mudam-se os tempos, é certo, mas haja dignidade!”, decide-se ele por esta máxima, confiante no seu papel de regulador de frases perdidas. “Se pensam que me reformam estão enganadas”, continua.
E sai, altivo, compassado, ditando as regras e impondo-se naquela desordem de letras sem rumo. Batendo com a porta e pondo os pontos nos iis.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Blindness" ou a selva humana

A cegueira branca. Uma cegueira que se opõe à física, tradicionalmente vestida de negro. Esta, cegueira de leite, cegueira da consciência. Uma sociedade de cegos que, por isso mesmo, se desumaniza e revela o negro mais negro do ser humano.

Ensaio sobre a cegueira (Blindness) estreia hoje. Filme de abertura do Festival de Cannes deste ano, baseado na obra homónima de José Saramago. Fernando Meirelles transpôs para cinema a sua perspectiva desta obra, interpretando-a de forma feliz, recorrendo à utilização de uma luz branca e leitosa e de planos desfocados, pretendendo assim, nas próprias palavras do realizador, transportar o espectador para dentro da tela, para o interior desta realidade de um mundo de cegos que constitui esta metáfora social.

Saramago não deixa pistas que nos permitam identificar a acção no tempo e no espaço. A história decorre numa grande cidade, uma qualquer cidade sem nome visível, e Meirelles recheou-a de personagens dos quatro cantos do mundo, numa composição de um tecido social suficientemente abrangente para respeitar a alegoria ditada pelo criador da obra.

O tema sintetiza a preocupação do autor. «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.», é o alerta, tantas vezes gritado por Saramago, dito também em Estocolmo aquando da atribuição do Nobel. É o seu mote querido, fio condutor ao longo da sua vasta obra.

Julianne Moore corporiza o guia, a bengala, o apoio, a única capaz de ver. Por isso mesmo, a luz ao fundo do túnel, a salvação. No final, uma réstia de esperança, o renascer para um mundo novo, o alívio do despertar de um pesadelo. Citando Saramago, aquando do lançamento do livro: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso."

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A minha alegre casinha

Faz hoje um ano que aluguei esta casa. A mobília foi trazida aos poucos, e já cá moram 129 peças, que decoram este espaço.

Nunca me sinto só, pois tenho recebido muitas visitas. Umas demoram-se mais, passam temporadas prolongadas. Outras entram e saem, numa visita de médico, mas todas têm sido sempre muito simpáticas comigo. Até hoje, não tive nunca um hóspede desagradável ou mal-humorado. Tenho tido muita sorte! Há também quem só espreite e não chegue a entrar: talvez porque não goste da decoração, a ache antiquada. Ou então é por timidez. A essas pessoas apetece-me dizer: "Entrem! Estejam à vontade e venham dar dois dedos de conversa..."

Gosto de morar nesta zona - estou mesmo a pensar fazer obras e ampliar a casa. Acho que vou precisar de mais espaço, para o ocupar com mais mobília ainda, novas peças, outro conforto. Preciso de procurar uns encostos que sejam a minha cara, assim uma espécie de mim... Também gosto muito de quadros, por isso por vezes penduro umas fotografias nas paredes para alegrar este meu espaço. Manias!

Como adoro cinema, reservei uma parte desta casa só para ver as fitas de que gosto. Bom, às vezes engano-me e sai-me cada uma! Mas o bom mesmo é poder comentar cada uma delas com estes meus amigos e falar sobre aquilo que vimos. Cada um de nós tem uma perspectiva diferente, outro olhar, e assim a conversa fica mais animada.

Já tive uma aparelhagem mas avariou-se, coitada! Ficou tão esquisita que nem conseguia atinar com a música que se lhe pedia. Deitei-a para o lixo e comprei outra, mais pequenina. Mas serve, porque quando gosto de uma música fico para ali a ouvi-la durante muito tempo até me cansar e passar para outra. Tenho também uma estante com alguns livros, mas tenho de lhe limpar o pó... ou talvez substituí-la por outra, mais moderna, que de vez em quando dá gosto fazer umas mudanças.

Bem, está alguém a tocar à campainha. Vou abrir... até logo!

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A rua dentro de quatro paredes

Estão dentro da sala de aula mas, na realidade, não estão. Os seus pensamentos vagueiam, a sua atenção é escassa e perde-se por outros atalhos que não os que conduzem ao professor e à matéria dada. Qualquer pormenor capta os seus olhares, produz risos, provoca conversas que muitas vezes, ou quase sempre, descambam para a insolência ou mesmo a agressão. Reagem assim porque lhes é muito difícil encontrar sentido nas palavras que ali ouvem, soando-lhes estranhas, antiquadas, inúteis para as suas necessidades e absolutamente estrangeiras para o seu mundo, mundo que é feito maioritariamente de rua, de onde conhecem as leis porque se orientam.

Os seus pais vieram dos quatro cantos do mundo, de todas as etnias que a França perfilhou dos longínquos territórios de outrora, e dos de hoje, de uma França perdida nos territórios ultramarinos. Vivem uma certa perturbação identitária, sem saberem bem para que lado pender, dividindo-se entre uma identidade europeia, branca, e as suas raízes, negras, mestiças ou outras, bem vivas tanto no rosto como na cultura doméstica. Mas também os há franceses de há muitas gerações, sendo que em comum carregam consigo o peso da bolsa vazia e das dificuldades de toda a ordem que os pais lhes deixam de herança.

Tomemos, então, um grupo de jovens professores, empenhados, esforçados em captar essa atenção dispersa. Tarefa difícil mas necessária, porque transmitir conhecimentos e definir regras são eixos fundamentais para viver em sociedade. Mas qual sociedade? Para que querem estes adolescentes gastar o seu precioso tempo, normalmente passado em pouco mais do que vadiar pela rua, divertir-se ou medir forças nos gangs, namoriscar e passar o tempo no shopping, acertando o olhar na montra da bugiganga barata e das últimas americanices em versão t’shirt? Sim, para que precisam eles de saber como conjugar o presente do conjuntivo, se o infinitivo lhes dá e sobra para o gasto?

Trata-se pois de dois mundos diferentes, antagónicos até, separados por tudo e mais alguma coisa, não só o salário ao fim do mês ou a falta dele e pelas suas consequências, mas por muito mais do que isso. Os tempos mudaram e deram origem a novas realidades sociais. Antigamente, o ensino não era para todos e muitos dos que não beneficiavam dele passaram pelo menos aos filhos a mensagem da importância de a ele ter acesso, para ascensão social, para alcançar melhores condições de vida. Era valorizado, portanto. Hoje talvez o seja menos. Talvez se pense que a vida tem outros pressupostos que não passam necessariamente pela escola; talvez haja quem pense que há outras formas de angariar dinheiro e que este tudo paga e tudo compra. Talvez hajam outros ídolos a venerar, que já não passam por ter mais conhecimento ou mais cultura. Ou será porque o dia-a-dia dos pais – e designadamente das mães – está de tal forma sobrecarregado que não lhes sobra tempo nem coragem para dar mais atenção aos filhos. Ou talvez porque os próprios pais não podem dar aquilo que não têm.

São estas questões que estão subjacentes neste filme, com o rosto de documentário. A Turma (Entre les Murs), de Laurent Cantet, é um filme sobre educação. E, por isso mesmo, é um filme muito abrangente, sobre a sociedade. Filmado numa escola pública presumo que dos subúrbios de Paris, poderia tê-lo sido em Lisboa ou em qualquer outro grande centro urbano, pois os problemas são transversais e cada vez menos conhecem fronteiras. E não se circunscrevem a questões raciais, antes radicam na pobreza e nas más condições socioeconómicas.

Não sei qual é a solução para chamar a atenção dos alunos, nem para os aproximar da escola. Mas para aqueles que advogam um maior facilitismo na abordagem escolar, ou um trazer para dentro das quatro paredes da sala de aula a rua, numa tentativa de aproximar linguagens e códigos, lembro só que não é nivelando por baixo que se obterão melhores resultados. Acho eu, que não sou nem professora, nem pedagoga... Apenas interessada.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sobre aquela água imensa…

Já vai fazer uma semana, tão Agosto ia o Outubro, bem diferente do que vai agora. Numa ida há muito anunciada até ao Alqueva assim se passou o sábado, entre um passeio de barco sobre aquela água imensa que compõe o maior lago artificial da Europa e um pôr-do-sol em Monsaraz, no Alentejo turístico e idílico.

A barragem do Alqueva, projecto já maduro, na casa dos cinquenta, viu a luz do dia em Fevereiro de 2002, quando começou o enchimento da barragem. Tem padrinhos e opositores, gente que advoga a sua pertinência e outra gente que o encara como extemporâno e, por isso, inútil. Para mim, alheia à discussão ambientalista, pousei os olhos na paisagem e retive a paz, a beleza e o cheiro do Alentejo. Aqui ficam uns momentos que captei e partilho convosco.



terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mimos

Quem não gosta de mimos? Todos gostamos. Gostamos que gostem de nós, que nos leiam, que se interessem e o demonstrem. Escrevemos porque gostamos de o fazer, ou por necessidade do exercício, ou como libertação, ou para comunicar, ou para conviver. Ou por tudo isso ao mesmo tempo.

É por todas estas razões que fiquei contente e surpreendida, quando ouvi ontem na Antena 1, no programa Janela Indiscreta, de Pedro Rolo Duarte, alusão ao meu último post O barco vai de saída... sobre José Cardoso Pires.

E eu, que sou uma desleixada em matéria de prémios blogosféricos, há já dias que tinha um prémio atribuído, curiosamente por duas pessoas, o Flip do Flipvinagre e o Tim Booth do Livrosemcritério. Dá pelo nome de “Dardos” e tem a aparência que acima se mostra.

Manda a tradição aqui neste mundo que se distribua por mais 15 alminhas, (ia jurar que costumava ser menos…) e tal, e tal, que o resto da conversa já todos conhecem. Infelizmente, a regra é “passa a outro e não ao mesmo”, como nos jogos de bola da adolescência, senão dois dos meus eleitos seriam necessariamente as duas fontes que jorraram este prémio. E outros blogueiros haverá, certamente merecedores da estima anunciada, e outros mais que entretanto já foram aqui neste sítio por mim recordados, sendo a lista que se segue um exemplo entre outros possíveis. Ah, já agora, se não quiserem continuar a passar compreendo perfeitamente, que isto de correntes…

domingo, 26 de outubro de 2008

O barco vai de saída...

O barco foi de saída, faz hoje precisamente dez anos. José Cardoso Pires saiu, de vez, passou a fronteira, depois de várias ameaças para transpor esta barreira que separa a vida da morte. A mais conhecida, talvez, em 1995, três anos antes da derradeira, em que o escritor, vítima de um acidente vascular-cerebral, vagueou no limbo para, recuperada a memória e a consciência do real, nos passar esse testemunho em De Profundis: valsa lenta, editado em 1997. Um testemunho escrito do tempo em que ele foi o Outro, tão ausente e por isso indiferente a todos e a tudo, alheado de si próprio.

Lisboeta por adopção, José Cardoso Pires foi mais um a juntar a sua voz para enaltecer a Cidade Branca, como lhe chamou Alain Tanner. No seu livro Lisboa - Livro de bordo: vozes, olhares, memorações, percorre as ruas da cidade, temperando-as das sensações que colhe a cada passo, das emoções, dos pensamentos. É uma Lisboa subjectiva esta, na primeira pessoa, como o é a cidade de alguém cheio de alma, cujo olhar se detém nos pormenores e os traduz numa escrita depurada. José Cardoso Pires, citando alguém aqui sem nome, e ainda a propósito de Lisboa, anui: A primeira vista é para os cegos! Através de praças e estátuas, contando histórias, lê a cidade interpretando-a pelos sentidos:

É que isto aqui não é só luz e rio, sabes bem. Não é só geografia, revelações ou memórias e o restante diz-que-diz dos manuais e dos oradores frustrados. Há vozes e cheiros a reconhecer - cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas das docas do Tejo; o do verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns dos aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro á porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; há, no inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes.

E acima de tudo há a voz e o humor, o tom e a sintaxe, aquilo que te está, cidade, mais no íntimo. Falo, é claro, do imaginário vocabular e da construção da frase que por si sós se fazem ironia.

E mais poderia citar, mas não vale a pena. Muitas outras obras ele deixou, todas elas referências maiores da nossa literatura, mas eu escolhi centrar-me nesta, talvez não por acaso mas sim pela atracção partilhada pela capital de Ulisses, como lhe chama. A nossa.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Diálogos distantes...



Olá linda,

Estamos de partida para Aurangabad, onde vamos passar uns dias a visitar umas grutas budistas. Enquanto aguardo a hora de partir para a estacão (um magnifico exemplar do colonialismo britânico), uso esta meia-hora para te mandar noticias.

Tenho-me lembrado muitas vezes de ti, ao percorrer estas ruas barulhentas e malucas de Bombaim.

Há dias, deambulando por uma rua "sem trânsito" (o que é impossível, porque mesmo assim há bicicletas, carroças, carrinhos e outros "veículos" de toda a espécie, a fazer-te desviar o tempo todo), deparamo-nos com uma família daquilo a que chamo "fazedores de grinaldas", à falta de melhor. São pessoas cuja profissão é tecer grinaldas lindas de flores e folhas frescas, que as pessoas compram para levar aos deuses do templo, nas suas rezas diárias. Habitualmente vês pessoas isoladas, mas aqui estava uma família inteira, com cerca de 10 pessoas dos 70 aos 4 anos, cada um com a sua tarefa, numa verdadeira "indústria" familiar.

Parámos para registar o momento, que é o que nós, turistas/viajantes, fazemos e aproveitámos também para comprar duas grinaldas, que pusemos ao pescoço.
O P. tirou a dele passados uns minutos, porque achou que estava a dar demasiado nas vistas, mas eu estava encantada com o meu colar de flores cor-de-laranja, que tinha umas florinhas brancas na ponta que deviam ser de jasmim...cheirava tão bem!...

Umas passadas mais à frente, lá estava um mini templo, dedicado não sei a que divindade (são milhões... e só consigo reconhecer Shiva e Vishnu), com os seus sacerdotes, com as suas rezas e toques no sino.

Resolvemos parar para oferecer as nossas flores.

Apesar de se tratar apenas de um altar, rodeado de cadeiras de plástico velhas, que faziam uma espécie de corredor de acesso, tivemos que deixar os sapatos "à entrada", para nos aproximarmos da divindade.

Tirei o colar do pescoço e fui toda despachada atrás do P., oferecê-lo ao deus, mas fui rapidamente enxotada por um sacerdote que, com gestos, me explicou que não podia oferecer uma coisa que tinha estado em contacto com o meu corpo.

Afastei-me, de orelha murcha, e fiquei a ver P. a fazer o seu ritual, que consiste no seguinte: faz-se uma vénia, depois dá-se um toque no sino, ofereces as flores ao deus e enfias o indicador numa taça de cobre com um pó escarlate que colocas na testa (no terceiro olho).
P. virou-se, todo feliz, com uma pinta no meio da testa e eu, toda invejosa, olhei-o a sentir-me já não humilhada mas injustiçada. Afinal de contas, ele também usou o colar, só que o sacerdote não viu.

Mas o sacerdote deve ter percebido que eu não era má pessoa, era apenas ignorante, e teve pena de mim. Com gestos, disse-me que já podia fazer a minha oferenda (as flores já deviam ter perdido a minha energia impura...). Até avancei de chinelas calçadas e tudo!

Mas voltei para trás para as deixar “à porta" do tal corredor de cadeiras. Queria fazer tudo como deve ser...
E lá fui, toda nervosa com a benesse que me tinha sido concedida; fiz o que tinha a fazer sem olhar para a cara do deus, para mostrar a minha humildade...

Tenho uma foto com a pinta vermelha na testa. Depois mostro-te.
Fica-se esquisito nesta terra, não achas?

Bom, minha querida, o P. veio chama-me. Parece que são horas de nos fazermos à estrada…
Ah... Já sei atravessar ruas! Como quase não há passadeiras, e mesmo quando as há não se percebe de que lado vêm os carros, colo-me a um indiano e atravesso pertinho dele. Pelo menos, sei que ninguém me atropela, mesmo que buzinem furiosamente (mas essa é a musica de fundo e já nem ligo...).

O P. atravessa como um verdadeiro hindu, fico fascinada…
T.

Eu fiquei para aqui toda pequenina, neste meu cantinho, cheia de pena de não estar aí ao pé de vocês, especialmente de ti, minha linda, para poder gozar de todas essas sensações... Ai, quem me dera! Deve ser um mundo novo, mesmo que velho seja, mas cheio de coisas outras para os nossos olhos, não é?...

Gostei muito que te tivesses lembrado de escrever. Sabes, antigamente fazia-se isso: as pessoas iam viajar, ou simplesmente moravam do lado de lá das outras, e escreviam-se. Hoje já não, o que é pena. Por isso este teu mail soube-me a pouco, ainda por cima porque não o esperava e assim a surpresa foi maior. E boa! Vou guardá-lo para o saborear devagarinho, aos poucos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Como um soco no estômago...


Era uma vez um operário da construção civil e a sua mulher. Ele desempregado, ela a dias. Era uma vez a irmã deste, enfermeira dedicada e o pai, dos dois, que carregava a cruz de um trauma do Ultramar, numa mente deformada por uma visão distorcida e parada no tempo. Era uma vez um rapaz Nuno, doente terminal, que agonizava numa cama de hospital, e a sua mãe, desesperada e vazia, principalmente vazia, que suspirava pelo fim daquela dor. Era uma vez um punhado de gente pobre, suburbana, infeliz. Era uma vez uma realidade fria e pardacenta.

Este filme que estreia amanhã, Entre os Dedos, é a última cria de Tiago Guedes e Frederico Serra, com argumento de Rodrigo Guedes de Carvalho. Rodado a preto e branco, já que é a cor da dor que retrata, com uma excelente fotografia e uma performance de Filipe Duarte, Isabel Abreu, Gonçalo Waddington e outros, a condizer, é um magnífico exemplo de um filme neo-realista português, brutal na sua crueza. No tempo da ditadura e da sua filha censura, o neo-realismo estava obviamente ausente dos ecrãs, por encarnar o despertar das consciências que se queriam adormecidas, à luz da atmosfera que se respirava. Agora, e ainda, tantos anos passados sobre os gritos de alerta deste género, ele sobrevive e ganha expressão.


Se riqueza gera riqueza, pobreza gera pobreza. E as injustiças devem ser denunciadas. Contudo, há uma espécie de prazer mórbido em filmar o submundo, bem patente no cinema português. A temática predilecta da maioria dos filmes nacionais centra-se em actividades que, estou convencida, a maioria dos consumidores de cinema apenas conhece no plano teórico. Não é o caso de Entre os Dedos, já que aqui a pobreza é mais comum, é de uma classe trabalhadora desafortunada, ou da doença, ou de outros males. Mas refiro-me ao cinema nacional em geral. Não que estes temas não devam ser tratados, nada disso. Apenas questiono se devam constituir o exclusivo, como se toda a sociedade portuguesa, todo o país se reflectisse nessa imagem de criminalidade, de submundo. Este olhar escuro, tão do agrado dos realizadores, tão deprimido e tão deprimente, do estilo de feios, porcos e maus, já cansa. Como se o bom cinema, o que é considerado arte, tenha que ser exclusivamente negro, obscuro, angustiado e como se só por esse diapasão se afinasse a alternativa ao cinema comercial.


Se eu fosse uma marciana verde, e não soubesse rigorosamente nada sobre este país, ficaria com a firme noção de que por cá, as mulheres ou tinham todas bigode e lenço preto, ou eram prostitutas, e os homens pertenceriam todos ou a quadrilhas organizadas, ou eram agentes corruptos, nos drogávamos em massa e outras “traquinices” que nem me apetece explorar agora.

Ainda a propósito, recordo uma recente entrevista de João Canijo, realizador de cinema, à rádio Radar, em que ele defendia a tese do miserabilismo. Este rótulo já cansa. Cansa pela falta de vontade de mudar as coisas, pela má língua atávica; cansa, porque, para João Canijo, Portugal se resume a esse quadro de tons negros, pela visão miserabilista e monocórdica. Cansa, ainda, pela arrogância intelectual com que muitas vezes esse discurso é servido.

Apesar de todas as carências que, efectivamente, existem, muita coisa se fez e muito caminho se tem construído.

Outro mundo há para além do underground. Talvez um mundo demasiado normal para a câmara de filmar, de gente comum, com preocupações comuns. E, claro, a miséria é muito fotogénica...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pequeno conto começado por P

Pegava numa caneta e ficava horas a fio a rabiscar palavras soltas numa página que já fora branca. Palavras soltas, sem sentido, sem ligação, apenas pelo puro gozo do exercício mecânico de pintar o papel com a tinta da caneta, de escrever, escrever... Era criança, jovenzinha, adolescente, e aquele acto entretinha-a numa espécie de brincadeira solitária, sem que tivesse qualquer pretensão de narrar histórias ou compor poemas.

Passou o tempo e interrompeu-se a brincadeira. Veio o teclado e, mais tarde, o prazer reinventou-se, de mansinho, pé ante pé, já sem a presença da tinta e do papel, mortos que estavam e a mão perdendo cada vez mais a paciência para o desenho das letras. Desta feita tentando que as palavras se dessem a conhecer umas às outras, se apresentassem e convivessem. Podia até ser que viessem a ser amigas, a crescer juntas. Quem sabe até formar família, multiplicarem-se.

Passaram então a desenvolver-se e a crescer, por impulsos sucessivos, ao sabor dos humores, do que a dona daquela mão impaciente via e lia e sentia e...

Perderam-se no emaranhado dos muitos afazeres, das poucas horas, dos vazios de inspiração, das hesitações. Os pequenos dramas dos casais de palavras, dos arrufos das cedilhas e dos acentos desavindos, num tumulto desordenado com fim à vista.

Pediu-se, então, a opinião de agentes neutros: que sim, é de continuar. Que sim, têm tudo para serem felizes. Afinal de contas, não se abandonam as palavras à primeira dificuldade, ao primeiro contratempo.

Procurou-se pois a reconciliação. Timidamente foram voltando, aos poucos, com sorrisos estreitos, combinando encontros nas páginas umas das outras, visitando-se.

Pouco a pouco, foram ganhando confiança. O sorriso tímido deu lugar ao riso e este à gargalhada. Estavam felizes, as pobres!, conviviam unidas e projectavam futuros longos.

Prometeram continuar juntas, mesmo que a dona se aborrecesse, as ignorasse e lhes fechasse a tampa do teclado.

Palavras leva-as o vento...

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A tradição já não é o que era...

Sábado à noite. No Lourdes Norberto sobe ao palco a última homenagem deste ano, desta vez a uns senhores que fazem 33 anos de existência e que eu, confesso a minha ignorância, julgava já moribundos para as cantorias. Falo da Brigada Victor Jara, assim baptizada em honra do chileno assassinado aquando do derrube do regime de Salvador Allende, em Setembro de 1973.

De viva voz fiquei a saber que nasceram em 1975 e que, no contexto revolucionário, incluíram-se nas campanhas de alfabetização para, a partir de Coimbra e através da música, fazer chegar junto dos iletrados a luz das raízes musicais do povo - ou seja, dos próprios. Era uma outra espécie de alfabetização, paralela à das letras e das contas de somar; esta, a dos sons reconhecidamente bons, de qualidade, autênticos.

O que este grupo faz é música da melhor. Com base numa recolha etnográfica, faz uso de uma multiplicidade de instrumentos musicais que vão desde a viola, a viola braguesa, a gaita de foles, o violino, a flauta, o acordeão, os ferrinhos, entre outros. Todos os sons são bem-vindos e a Brigada Victor Jara cozinha-os magistralmente. Ou, como talvez eles próprios o diriam, "os cozinheiros não somos nós mas o povo que gerou esta música". E é precisamente aqui que é devida a reflexão. Música popular, música pimba, música pop, música para o povo, música de recolha etnográfica. Tudo coisas diferentes, como é bom de ver. O Estado Novo foi pai de um género dito popular mas que ficou para os anais da História como género maldito, o folclore. De cariz propagandístico, servia os intentos do Estado e pintava um povão de bochechas cor-de-rosa, reduzindo-o a bilhete-postal das chamadas regiões administrativas.

Em contrapartida, surge um trabalho mais sério, de recolha, como é o caso deste grupo, entre outros que também se dedicam a perpetuar a tradição oral portuguesa. Aqui as notas são bem outras, o tratamento, a harmonização das cantigas soa de maneira totalmente diferente: mais rica, mais genuína, muito melhor.

Depois, surge o pimba. Género popular, sem dúvida, mas sem o mérito que se atribui à música popular tradicional, assente numa pobreza musical muitas vezes confrangedora mas que, por isso mesmo, entra muito facilmente no ouvido.

Há, portanto, várias versões de música popular. Todas elas saídas do povo e para o povo. Todas elas por ele apreciadas, se bem que em momentos e contextos diferentes. A primeira, fruto de uma ruralidade fechada em si mesma, sem grandes influências do exterior a não ser a que lhe advinha da poeira dos séculos, já que em muitos casos se nascia e morria sem visitar a aldeia vizinha; cantava a sua realidade através de instrumentos tradicionais, proporcionando uma harmonia e beleza próprias das coisas simples. A segunda, manipulada, acatitada, voz do pobrete mas alegrete, já sem o charme da primeira. Agora, o pimba, versão industrializada, consumista, que ora canta a saga do emigrante de Agosto, ora se detém nas mundanidades suburbanas do shopping.

Porém, todas elas populares, se entendermos como tal um género que nasce do povo e a ele agrada. Todas elas, a meu ver, explicadas pelas conjunturas que lhe correspondem e pela dinâmica da História. Do mundo rural, fechado, traduzido aqui em regiões com identidade própria, à globalização, à linguagem comum.

De entre as três nem pestanejo quanto à escolha. É evidente que é da primeira, da música popular tradicional, que me chegam os sons que me encantam, pela variedade e riqueza que permitem. Mas não posso deixar de me lembrar de uma frase que vi há dias pespegada na parede de um café e que, tão a propósito, falava assim: "o povo gosta de luxo; quem não gosta é intelectual". À música, e não só, assenta-lhe como uma luva...

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Traz outro amigo também...


Traz outro amigo também. E outro. E outro ainda, todos pela mão de Armando Caldas, o director do Intervalo Grupo de Teatro, que mora no Auditório Lourdes Norberto, em Linda-a-Velha.

A cada Outubro - há já 27 anos a esta parte, repete efusivamente Armando -, que esta Companhia de teatro celebra a sua existência com uma Semana Cultural (ver post de 8/11/2007), em que todos os dias se homenageia alguém das artes do espectáculo com outro alguém que percorre o seu caminho, necessariamente longo, feito de muitos e muitos anos a pisar palcos. São palavras de apreço que poderiam soar a uma banal troca de galhardetes, não fossem estes eleitos gente de reconhecido mérito e muitas provas dadas. Palavras, não discursos; conversas entre amigos, com o toque da informalidade que o momento requer. A acompanhá-las, a música, sempre. Sempre nacional e sempre variada, como variados são os aniversariantes.

O aniversariante de hoje (ou melhor, de ontem, o relógio não mente...) à noite chama-se Nicolau Breyner. Esse mesmo, o actor que dispensa apresentações; um clássico dos palcos e ecrãs nacionais, tão clássico que quase nos esquecemos dele, não está na moda; que saiu do Conservatório com um diploma em drama para, logo de seguida, mergulhar de cabeça na comédia, que lhe ficaria colada à pele para o resto da vida, não fosse uma troca de agulhas, ao regressar ao primeiro género, através de vários papéis dramáticos representados no cinema nos últimos tempos. Pela minha parte prefiro-o assim, neste registo sério, como em Os Imortais, filme de António Pedro Vasconcelos, baseado no romance de Carlos Vaz Ferraz Os lobos não usam coleira. O título do filme vai beber à tropa de elite do exército persa; um thriller centrado em quatro ex-comandos da Guerra Colonial que, marcados por perturbações que lhes guiam as vidas, mantêm todos os anos um ritual que lhes permite recordar os velhos tempos e solidificar o espírito de grupo. Neste filme, Breyner dá corpo e alma ao inspector da Judiciária, cujo faro de velho tarimbeiro, amante de fado e outros petiscos, lhe permite ver para além das aparências.

Deste e de outros Breyner falaram Carmen Dolores e Jorge Leitão Ramos, a primeira, testemunha do teatro; o segundo, elencando o seu percurso no cinema. Memórias revisitadas ao longo de duas horas de convívio. Porque de convívio se trata, assim com sabor a tertúlia, acompanhada à viola por Rui Veloso e sua banda, entre gracejos e pequenas estórias; os clássicos do Rui cantados por todos, de cor, de tão entranhados e sabidos que já fazem parte da memória musical deste País.

Anteontem houve outro e, no dia anterior, outro ainda. Amanhã haverá mais. Até domingo. Armando Caldas traz até nós este ano Luís Miguel Cintra, João Mota, o grupo coral Cramol, Nicolau Breyner, Carlos Avilez e a Brigada Victor Jara. Com eles e para eles a música de Carlos do Carmo, José Mário Branco, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Rui Veloso, João Afonso, Xaile, entre outros.

Neste espaço pequeno, neste cantinho acolhedor, a rebentar pelas costuras, de tanta gente, sentada no chão que já não há cadeiras que cheguem. Vêm bancos de pau em socorro das pernas dos que aguardam em pé... É sempre assim, ano após ano. Vão os habitués e os novos, uns e outros à espera do reconforto de um serão em família, que interrompe a rotina e faz a semana merecer-se. Livremente, que por cá não se cobram entradas.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Incapacidade

Lamento muito desiludi-lo, senhor António, mas, por mais que me esforce, ainda não foi desta que consegui dizer mal de si. Gostaria de lhe fazer a vontade, de o surpreender, elevando-me assim da massa anónima de admiradores seus, dizendo que as suas crónicas são um enfado, são mais do mesmo - e que dizer do estilo! -, aquela mania de fazer apartes em parágrafos soltos, suspiros, falar com os seus botões…

Confesso a minha incapacidade para cumprir tal propósito. Prometo continuar a esforçar-me mas, ou a minha falta de jeito ou a sua inesgotável arte de bem pintar pequenos nadas, fazem antever um caminho difícil. A ver vamos: enquanto há vida há esperança…

Ver crónica de António Lobo Antunes, Eu, em Agosto, "Visão", 26/09/2008

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Há mouro na costa...

Estas fotos tiradas em 2004, na praça Jemma al Fna, em Marraquexe, parecem simbolizar uma viagem ao passado, uma espreitadela à Idade Média...

Uma praça mítica, com um ambiente do outro mundo, em que a realidade e a ficção se misturam, numa paleta de cores, de cheiros, de sensações.
Aqui para sul, a dois passos de casa, a diferença, o exotismo... Tão perto de nós.


quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Não te posso ver nem pintado



É este o título curioso e bem arquitectado, num trocadilho feliz, da nova exposição do Museu Berardo, no CCB, que pretende renovar anualmente a sua exposição permanente, de acordo com o que tenho lido a este respeito.

Apresentada como um percurso da figuração na pintura dos últimos cinquenta anos, esta exposição contempla obras de diversos autores. Mas foram as telas de Paula Rego, Noronha da Costa e Julião Sarmento as que mais me cativaram, por uma empatia estética. A pintura figurativa, influenciada pela fotografia, o cinema ou o multimédia, pretende reter imagens do real, sendo que os "transforma", interpretando-o, numa óptica mais próxima do sentimento do que da visão nua e crua. Assim, e voltando ao meu sentir sobre Paula Rego, por exemplo, as criaturas que figuram nas suas telas falam-nos de lendas e contos mas, pela força da sua própria realidade, ganham vida própria, impõem-se-nos, e não se limitam tão somente a ilustrar a narrativa que lhes serviu de berço. Numa imagem que vem a propósito, este pequeno excerto de Henry Miller (in Trópico de Capricórnio, 1939) que, e em sintonia com o Comissário da Exposição Eric Corne, retirei do folheto de divulgação da mesma:

Já não olho nos olhos da mulher que tenho nos meus braços, mas atravesso-os a nado, cabeça, braço e perna inteira, e vejo que por detrás das órbitas do seus olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras.

De salientar a presença de pintores de paragens mais distantes, como é o caso do filipino Manuel Ocampo ou do sul-africano William Kentridge, a que, normalmente, dificilmente temos acesso.

Apesar de toda a polémica gerada em torno de Berardo (muitas vezes mais pela provocação da sua própria figura, tão mal-aceite nos meios intelectuais), e sem querer tomar partido pois, para isso, é necessário estar por dentro da política cultural e dos meandros do negócio, reconheço-lhe que trouxe uma vantagem para o público em geral: o livre acesso contribui para alguma democratização da arte, bem como uma rotatividade francamente apreciável das obras expostas. Faz-nos falta um museu de grande projecção, que não temos, como um Guggenheim, um Prado ou um Moma. Bem sei que a dimensão é diferente da dos países onde esses estão instalados, mas seria uma âncora que atrairia visitantes, turistas e consumidores de produtos culturais e que, consequentemente, imprimiria à cidade - ou ao País - uma dinâmica mais cosmopolita.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O candidato... a candidato

Aquele querido mês de Agosto escolhido para nomeação aos Óscares

O Instituto do Cinema e do Audiovisual anunciou que Aquele querido mês de Agosto, filme de Miguel Gomes, é o candidato português a uma nomeação para o Óscar de melhor filme estrangeiro. As nomeações serão conhecidas em Janeiro de 2009 e a entrega dos prémios a 22 de Fevereiro.

Este filme (ver post A realidade é um lugar estranho..., de 08/09/2008) concorre com o italiano Gomorra, sobre a mafia napolitana e com o brasileiro Última parada 174 ou, ainda, com o francês A Turma. Vejamos se, nomeadamente mais um registo do mundo da máfia, não se sobrepõe a este olhar despretensioso sobre o interior português... Seja como for, penso que é de registar algum reconhecimento a esta "fita".

terça-feira, 23 de setembro de 2008

No reino dos xetis: o marketing do Norte


É a pronúncia do Norte
, já cantava Rui Reininho, dos GNR. É a pronúncia do Norte, os costumes do Norte, o frio do Norte. É a diferença, demasiadas vezes mistificada, entre Norte e Sul, preconceitualizada. É a lenda, o desconhecimento. O cliché.

Todos os países têm esta dicotomia entre Sul e Norte e Bem-vindo ao Norte (Bienvenue chez les ch’tis) é um filme com piada. Este filme, divertidíssimo, é muito mais do que uma comédia, ao denunciar os clichés e as ideias erradas sobre um norte desconhecido dos próprios franceses, protagonizado por Nord Pas de Calais, encarada até à data como uma região atrasada, de grunhos, pobre, uma espécie de degredo para quem, por ironia do destino, lá fosse parar.

Mais do que um filme, esta comédia revelou-se uma excelente aposta enquanto produto turístico e de promoção da região. Produzido com a colaboração das respectivas autarquias, que ajudaram a financiá-lo, ele é, neste momento, o maior sucesso de bilheteira do cinema francês, pondo "na moda" o sotaque, os costumes e até alguns produtos da região.

A este propósito, transcrevo uma citação do DN (ver artigo):

Quando o Le Monde publicou um artigo acusando Bem-Vindo ao Norte de estereotipação regional, o ex-ministro da Cultura Jack Lang, deputado socialista pelo Nord-Pas-de-Calais, saiu em sua defesa, dizendo: "As pessoas ali são generosas e simpáticas. São autênticas! O filme é, sim, contra os clichés."

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Um dueto memorável...

Já vos tenho dito que, de vez em quando, aterram no meu mail coisas engraçadas? Pois é! E aqui vai mais uma que vos deixo, em vésperas de mais um fim-de-semana: Danny Kaye e Louis Armstrong, num dueto cheio de luz!

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Mamma Mia! - how can I resist you...

Numa época de revivalismos, reabilitam-se os ABBA, entre muitos outros dos 70’s e dos 80’s. Já não são foleiros nem pirosos. E não são mesmo. Reis da pop, as suas canções sobreviveram todos estes anos por mérito próprio e distinguem-se de outra pop mais actual, pela qualidade musical e das letras que, dentro do género, são bem melhores do que muitas que por aí andam. Este filme, todo ele centrado na música da banda sueca, com interpretações fantásticas de todo o elenco, e com uma Meryl Streep fora do tradicional registo dramático, dando provas de ser uma actriz por inteiro, que agarra qualquer papel, é uma injecção de boa disposição. Um conto de fadas cor-de-rosa choque, é certo, mas que deixa um sorriso e transmite uma energia contagiante. Ao contrário do que se possa pensar, agrada não só aos mais velhos como também aos seus filhos. Absolutamente transversal!

E, fazendo coro…

Thank you for the music, the songs I'm singing
Thanks for all the joy they're bringing…

É este o espírito. Não para pensar, mas para sentir.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A América do nosso descontentamento

Obama versus Palin. Porque é disso que se trata. Umas eleições que, até há pouco tempo, pareciam estar bem encaminhadas para o lado dos democratas, revelam-se agora como que ensombradas pela “aparição” em cena desta verdadeira deusa do obscurantismo. Se, em termos oficiais e formais, as eleições americanas se disputam entre Obama e McCain, a realidade no terreno parece ser diferente. Sarah Palin ganha protagonismo e remete o candidato McCain para segundo plano na discussão pública, como se fosse ela própria a candidata à presidência.

É de Palin que se fala ou, se quisermos, McCain fala através dela, como se tivesse nela delegado plenos poderes de representação. Esta mulher, que nos entra pela casa dentro com ar alucinado, que em nada defende os direitos das mesmas; uma mulher que, completamente tonta, se manifesta a favor da pena de morte, do uso generalizado das armas (como se já houvessem poucas...); que não acredita no aquecimento global e não percebe a vantagem da utilização das energias alternativas. Uma mulher de um fundamentalismo atávico, quer religioso, quer político, quer tudo, que defende o uso da força para a resolução dos conflitos internacionais, dos quais é fácil de ver que está a anos-luz de os entender. A última ideia brilhante nesta matéria, é a de que os EUA deveriam declarar guerra à Rússia…

Posto isto, é fácil “bater” na senadora. E bate-se muito, em português, espanhol, francês, inglês, alemão, italiano, etc. Em europeu. Mas a dúvida mantém-se: será que em americano se vai bater o suficiente? A utilização de Palin como “estrela da Companhia” nesta campanha eleitoral foi um golpe de mestre por parte dos republicanos, ao puxar pelos sentimentos mais autênticos da América profunda e ultraconservadora que, como sabemos, é demasiado extensa para ser ignorada. Enquanto McCain, que responde aos anseios de um eleitorado conservador e republicano, se preocupa, no entanto, em fazer passar a mensagem de alguma mudança em relação à política vigente(!), com Palin pretende-se garantir o voto do eleitorado mais retrógrado.

Não fosse esta uma eleição do império, mesmo que em declínio anunciado, e rir-nos-íamos de tamanhos disparates. Mas sendo-o, é assustador.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"A Solidão" ou a sombra dos dias cinzentos...

Prémio para Melhor Filme e Melhor Realizador nos Goya, os mais importantes galardões cinematográficos espanhóis, é a história de duas mulheres, dois destinos urbanos cruzados. Adela é uma mãe solteira que decide deixar a pequena cidade de província em que vive e ir para Madrid com o seu bebé, Miguel. Na capital espanhola, Adela faz novos amigos e aluga um quarto na casa de Carlos e Inés. Mas um ataque terrorista irá despedaçar a vida de Adela. Já Antonia, a mãe de Inés tem um pequeno supermercado e vive uma vida tranquila com o companheiro e as suas três filhas. Mas no dia em que uma das filhas lhe pede dinheiro a paz familiar termina.

Segunda longa-metragem de Jaime Rosales, o filme ganhou ainda o prémio de Melhor Actor Revelação nos Goya para o actor José Luis Torrijo e foi apresentada no Festival de Cannes, na secção Un Certain Regard. (in Cartaz Público)

Gosto de Espanha e dos espanhóis, pela diversidade do território e vivacidade do carácter. Gosto da cultura, das letras e das artes. País vizinho, com tanto em comum como de diferente com o nosso, repudio a velha ideia, transmitida de geração em geração e ainda muito entrincheirada – principalmente na zona da raia… - de que de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. Mito antigo, só “justificado” por uma História de conquistas de território e de poder, feita de avanços e recuos ao longo dos tempos.

Este filme que estreia hoje por cá, poderá não ajudar a desfazer o mito. Poderá não cativar um público mainstream, quer pelo ritmo lento da acção, quer pela “demasiada” identificação com um quotidiano baço, tristonho, que não nos fará voar nem sonhar com as estrelas. Feito de micro-histórias do dia-a-dia de gente anónima, esta longa-metragem do catalão Jaime Rosales está no extremo oposto aos filmes de Almodôvar, apreciado transversalmente pelo colorido da acção, pelo exotismo, pela excentricidade da narrativa. Aqui, em A Solidão, os dramas das personagens são talvez mais reais do que em Almodôvar, mais comuns. É uma solidão feita de muitos silêncios e vivida em vários cenários, conforme as várias personagens que compõem o filme, e que nos fala da fragilidade da vida, deixando-nos uma incómoda sensação de vazio.

Porque o cinema espanhol é mais do que Almodôvar. A ver, sim, mas não num dia cinzento…

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A realidade é um lugar estranho...


Aquele querido mês de Agosto, filme de Miguel Gomes que estreou recentemente, tem muito que se lhe diga. Um pouco ao sabor dos acontecimentos, e fruto de um conjunto de circunstâncias, este filme, como um rio, tomou um curso um pouco diferente do que o que estava previamente pensado na cabeça de Miguel Gomes, de acordo com as palavras do próprio realizador, transformadas em letra de artigo publicado num dos nossos semanários. Por falta de dinheiro, o que parece ser uma constante nestas lides, este filme deixou de ser uma ficção por inteiro, para passar a iniciar-se como documentário. Escolhidas algumas terras do concelho de Arganil - penso que por nenhuma razão em especial a não ser o facto de ser uma zona que o realizador conhece desde menino -, a câmara vai registando os momentos característicos, que vivem tanto lá como aqui, no celulóide: as procissões, a caça ao javali, o jogo da malha, o Agosto dos emigrantes, as festinhas e os bailaricos, protagonistas privilegiados durante estas duas horas e meia de filme. Mas há mais. Interpretado por actores amadores e gente da própria terra, fala-nos dela na primeira pessoa. As histórias de vida, os pequenos mitos de algumas “cromos” locais, figuras criticadas e, ao mesmo tempo, enaltecidas nas memórias desta terra e que conseguimos facilmente identificar como personagens-tipo, reconhecidas noutras regiões. Momentos e personagens que pontuam um Agosto do Interior.

Único filme português presente na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, que decorreu de 15 a 25 de Maio último, este filme poderia ser entendido como um retrato de uma ruralidade kitch: uma crítica a esta realidade que, vista de fora, através dos olhos da gente da cidade, nos surge estranha e que tendemos a rejeitar. A parte de ficção, com uma historieta algo embrulhada sobre um pai demasiado agarrado à sua amargura e à filha-menina-prodígio, contribui para carregar os tons desta realidade estranha… Mas subsiste, a meu ver, um retrato de autenticidade, do Portugal profundo e de gente marcada pela interioridade. No final, um diálogo, magnífico e surreal, em que o realizador parece querer dar luz sobre o filme, ao dizer-nos qualquer coisa como “só existe aquilo que eu vivo, aquilo a que eu reconheço existência”.

domingo, 7 de setembro de 2008

“Carvalhesa”: o som da Festa



É aos saltos que um mar de gente termina cada noite da Festa do «Avante!», ao som da Carvalhesa. Uma visão contagiante, sem dúvida, de uma multidão ululante, aos pulinhos, entre risadas, copos e uma espécie de ensaio mal-amanhado de dança de roda.

A Carvalhesa é uma música de dança de roda transmontana. Recolhida na aldeia de Tuiselo, perto de Vinhais (Bragança), em 1932, por Kurt Schindler, um maestro e compositor alemão radicado nos Estados Unidos, ficou registada no livro editado pela Columbia University, em 1941, Folk Music and Poetry of Spain and Portugal. Mais tarde, em 1970, um etnólogo corso, Michel Giacometti, responsável por uma missão internacional de estudo do folclore das ilhas mediterrânicas, resolve seguir as pistas deixadas por Schindler e descobre uma outra versão da Carvalhesa nesta região de Trás-os-Montes, pressupondo-se que, tratando-se de uma música de baile, terão havido outras versões, apagadas pelo tempo.

Em 1985, o PCP adopta esta música como hino para as suas actividades, designadamente para a abertura e encerramento da Festa.

Numa festa em que a música constitui o principal atractivo para a grande maioria dos participantes, que a vêem como mais um festival onde podem assistir, por bom preço, a um conjunto diversificado de bandas e estilos para muitos gostos, a Festa do «Avante!», continua ainda a ser um acontecimento a reter, apesar da feroz concorrência de todos os outros festivais que enchem o calendário. Uma verdadeira feira, onde a música se mistura entre tendas de artesanato e quinquilharia, em que o velhinho lenço palestiniano sobrevive, malgré tout, e se “actualiza” em várias cores; em que as tendas de comida regional e internacional, de um universo comunista cada vez mais escasso, divulgam sabores esperados; em que ranchos folclóricos satisfazem os mais velhos adeptos do Partido, saudosistas de um tempo que já lá vai e que, mesmo assim, muitos deles não chegaram a viver; palcos de propaganda ideológica, naturalmente inerente ao espírito da Festa, já que, apesar da confusão existente em muitas mentes, não se trata de mais um qualquer festival. É assim, neste reino do brique-à-braque, que a Festa do «Avante!» sobrevive e se afirma, ainda e remando contra a maré. Com o esforço dedicado de muitos militantes do PCP, verdadeiros elos nesta corrente, que erguem a Festa.

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", já cantava Camões no século XVI. E é bem verdade. Sinal dos tempos e da inevitável alteração das conjunturas históricas, ditadas pelo desenvolvimento económico e pelas alterações vividas pelas sociedades modernas, a ideologia comunista e os seus partidos nacionais têm vindo a perder terreno (não obstante se lhes reconhecer a estes um papel louvável, ainda agora, como porta-voz das populações, podendo funcionar como elemento de equilíbrio e ponderação na tomada de decisão política, como "travão" do status quo). A propósito, lembro aqui o excelente documentário que a RTP passou esta semana, Comunismo – História de uma ilusão, e que tão bem ilustra o seu nascimento, apogeu e declínio. Naturalmente, como tantas outras correntes, apontando aspectos fortes e fraquezas que o caracterizaram em quase 100 anos de domínio da cena internacional. Imperdível, para melhor se perceber a História.

Resta, pois, a Festa. “São as águas de Março fechando o Verão”, cantava Elis Regina, a propósito do seu país tropical. Aqui, a Festa, com os seus contornos de rentrée. Sempre no início de Setembro. Sempre a fechar o Verão.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

As fabulosas histórias dela

Nunca tinha lido nada de Beatriz Pacheco Pereira. Dela apenas sabia ser irmã do seu irmão, o próprio, e de ser uma das fundadoras do Fantasporto, o Festival Internacional de Cinema do Porto.

As fabulosas histórias dela: contos do Porto imaginado é um livro publicado em 2003. Contos no feminino, histórias dela, ou melhor, de várias elas que parecem ter um denominador comum: a espera. Mulheres sozinhas ou mal acompanhadas que esperam ser felizes. Como tantas e tantos. Mulheres de um quotidiano num espaço do norte, supostamente imaginado, mas que reflecte o dia-a-dia deste nosso presente urbano, com os desencontros e as aspirações que pontuam as nossas vidas. Bem escrito, na medida certa, em que nos apercebemos dos sentimentos das personagens, sem que para tal Beatriz tenha recorrido a excessivos floreados de escrita, foi com prazer que li estes contos.

Há muito tempo que não recorria a uma biblioteca pública para requisitar um livro. O espírito consumista em que vivemos e a necessidade ou o hábito de possuirmos coisas faz com que nos esqueçamos que existem recursos disponíveis e de fácil acesso. Colhido um pouco ao acaso na biblioteca, foi graças a ela que, mais tarde e em casa, descobri que tinha nas mãos um livro com uma dedicatória da autora dirigida a Eduardo Prado Coelho…! Vantagens deste circuito por espaços públicos, cujas obras vivem e respiram entre tantas mãos e cumprem, assim, melhor a sua função de passa-palavra…

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A partida do Mestre Caymmi

Quem não conhece músicas como Modinha para Gabriela, Marina, São Salvador, Você já foi à Bahia?, O dengo que a nega tem, Doralice, Saudade da Bahia, Rosa Morena, O que é que a baiana tem, entre muitas, muitas outras canções que fazem parte das nossas memórias e que, muitas vezes, não lhe atribuimos a autoria, pois conhecemo-las interpretadas por todas as grandes vozes brasileiras. Algumas destas músicas, as mais antigas, celebrizadas na voz de Carmem Mirada, constituindo autêntico património histórico do Brasil.

Dorival Caymmi nasceu a 30 de Abril de 1914, em São Salvador da Bahia, filho de emigrantes italianos no Brasil, e morreu há poucos dias, a 16 de Agosto de 2008, no Rio de Janeiro. Foram 94 anos de um legado musical que recheou a música brasileira das melhores canções da sua história.

Para o Mestre, uma grande salva de palmas e um imenso bem-haja!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Chiado: memórias de uma cidade


Lembro-me bem da notícia. De manhã, acordava com o alarido na rádio, que gritava Lisboa está a arder! - qual Roma de Nero. Nunca mais me vou esquecer do arrepio sentido, da confusão, da angústia deste acordar aflito. Não de um medo físico, já que não morava perto, mas de um medo de alma, de coração, da cidade que adoro. Parecia imparável o fogo que deflagrou pela madrugada e que se agigantava, comedor sôfrego de uma Lisboa antiga, da Lisboa queirosiana ou de Pessoa, da dos romances da escola que, felizmente, éramos obrigados a ler. O medo de que desaparecesse toda essa memória de ruas estreitas e cafés de tertúlia, da Lisboa das vozes do passado, cantada por tantos.

Passados 20 anos, impõe-se recordar. Como se possível fosse esquecer…