segunda-feira, 4 de março de 2013

Este blogue mudou de casa. Para todos os interessados em continuar a seguir os meus escritos, informo que a nova morada é no Facebook, aberto a todos os que lá quiserem fazer uma visita:
http://www.facebook.com/umaespeciedemim.paulacrespo?ref=tn_tnmn

Obrigada e lá vos espero! :)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência…



Imagem tirada daqui

Chico esperava pacientemente à porta do colégio. Já passava das cinco da tarde, a chuva caía teimosa e mole há horas e começava a fazer frio. Mirou o relógio que vislumbrava da entrada da escola, a porta abria e fechava sempre que saía um miúdo e era colhido com um beijo na bochecha, um afago, uma festa na cabeça. A porta de um carro fechava-se invariavelmente atrás dessa imagem, repetida tantas vezes quantos os colegas que abandonavam o local onde passavam os dias.

O som e as imagens foram sendo cada vez mais raros, mais espaçados. Esgueirou os olhos uma vez mais pela porta que agora tinha ficado entreaberta e colou-os ao relógio. Tinha passado uma hora a mais do que a devida e nenhum sinal da mãe. Chegou, por fim, com a irmã pela mão, que entupia de chocolates.

- Chico, anda, que estás tu a fazer aí parado?! Mexe-te! A Teresinha tem de ir já para o banho.

E lá seguiu Chico, quatro passos atrás das duas. Chegados a casa, o serão desfilou igual ao da véspera, com a mãe a praguejar contra a má sorte e contra a vida – que triste era! -, os mimos e sorrisos engolidos pela Teresinha, todos para a Teresinha, e Chico, quatro passos atrás, enfiando-se no sofá, escondido atrás dos quadradinhos das páginas dos bonecos, fingia não dar por nada e desejava crescer depressa.

E o tempo fez-lhe a vontade. Chegou a puberdade, os primeiros olhares trocados timidamente com as raparigas do liceu. Os regressos a casa, onde a mãe continuava a barafustar contra a triste sorte, o pai de corpo presente e espírito alheado, sempre ausente,

- não serves para nada!

sentenciava a mãe. Chico virava as costas, voltava a enfiar-se no sofá, pregava os olhos na televisão, fingia viajar.

- Ainda há chocolate, mãe?

- Há uma tableta, mas é para a Teresinha, já sabes que ela aprecia.

O tempo cumpria a sua função, umas vezes mais devagar do que outras. O corpo robusteceu-se, ganhou forma de homem feito. Tinha passado por menino, mais ou menos silencioso, ouvindo as lamúrias da mãe que embriagava no próprio eco e no pai, que de pai gastava só o nome, pois o seu tempo era feito de outros caminhos. E sempre a voz daquela mulher, carregando os mesmos lamentos, carinhosamente cultivados e regados para que não murchassem. Chico enfiava-se no sofá, ansiando pela atenção há muito esperada, que não chegava.

E desistiu. Um dia chegou, bateu com a porta e partiu.

Abriu os olhos e afiou as garras. Cresceu de Chico a Francisco. Fez coisas. Ganhou, perdeu. E esperou. Casou, sonhou, esperou. Descasou. Vagueou por muito lado, carregou o sonho e a mágoa. Procurou o ontem nos dias de hoje,

- talvez amanhã seja diferente,

olhou o presente com a mágoa do passado. Tinha uma sede antiga que não passava. Em todas procurava essa água, um copo cheio, mas era sempre pouco. Desconfiava, irritava-se, enciumava. Cobrava as atenções a qualquer um, exigia respeito. Precisava de si, precisava urgentemente de si, precisava que o ouvissem e o seguissem. Abandonara o sofá onde os seus olhos belos e grandes observavam o vazio da casa cheia de ais, mas seguia às cegas, de grandes olhos abertos. E era sempre o mesmo sonho, a mesma ausência…

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Memórias de infância

Foto de José Neves

Maria olhou a miniatura de lata amarela. A tampa da arca aberta e ao lado o saco cheio de outras miudezas, prontas a seguirem viagem até ao contentor do lixo mais próximo. Agarrou o pequeno brinquedo, mexeu, mirou e remirou. Sorriu um sorriso calmo e morno e viajou numa memória perdida. Aquela miniatura lembrou-lhe as vezes em que, puxada pela mão da mãe, caminhava apressada, passos atabalhoados, pernas curtas de criança, aos tropeções, “depressa”, diziam-lhe, “não podemos perdê-lo”, e dava por si quase atirada para dentro, entalada entre um sobretudo e um vestido de lã. Sentia o carro deslizar a uma velocidade estonteante, e ia experimentando o prazer dessa pequena vertigem, deliciada. Mais tarde, a sensação amadureceu, a vida encheu-se de outros afazeres e o tempo corria veloz demais para a velocidade deste carro. Agora o prazer já era outro, ditado pelo charme da pequena carruagem. Deixou de ser escolha para pressas e foi usada para momentos em que o relógio vivia devagar. Mais tarde, ainda, abandonou por completo estes passeios, embarcou noutros, até ao momento presente, em que a viagem se fez de novo, através dos carris da memória. E quase jurava que voltou a sentir o aconchego do sobretudo e do vestido de lã.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Inquérito

Imagem tirada daqui

Cristina e Margarida prepararam-se para mais um inquérito a uma família dita “tipo”. Das suas famílias, aspectos havia que teoricamente se distanciavam do modelo tipificado como ideal, se bem que cada vez mais comum nos tempos que correm. Prepararam-se para entrevistar uma mulher que lhes falaria da sua vida, da sua família e dos seus hábitos de consumo. Só não se tinham preparado para ouvir um relato na primeira pessoa de alguém que se dizia feliz, apesar das apertadas condições económicas em que vivia.

Carla e Carlos tinham nascido um para o outro. Seres iguais, nos afectos e esperanças, alinhavavam a vida de ambos como se de uma única se tratasse. E, realmente, tratava-se de uma só. Nela cabiam muitos outros seres, a começar pelos três filhos adolescentes e uma rede de parentes e amigos, todos eles muito próximos entre si - e de Carla e Carlos. Também. Nessa rede viviam e dela se abasteciam, de afectos e proximidade. A ela recorriam todos, sempre que necessitavam de alguma coisa. Entreajudavam-se.

Carla é jardineira e Carlos serralheiro. Carla ganha uns magros 400 euros mensais e Carlos vai-se safando no ofício o melhor que pode. Carla ajusta as despesas do mês ao parco rendimento, tira partido de todos os talões de desconto que lhe chegam às mãos; contabiliza ao cêntimo as necessidades indispensáveis e dispensa todas as outras. No início de cada ano, perspectivam em conjunto as férias e os principais acontecimentos; no início das semanas, perspectivam as refeições de família e cozinham-nas, à vez. Partilham tudo o que tem a ver com a vida de família e, a bem dizer, nada mais resta para além dela. Centram a sua existência neste núcleo e ele lhes basta.

De vez em quando, conseguem tirar uns dias de férias só para os dois, já que um casamento precisa de respirar também através destes momentos. "Os filhos compreendem", diz Carla, "e apoiam-nos. Já realizei a viagem da minha vida: fui a Veneza com o meu marido, uma semana, e adorei!"

Carla veste sem luxo mas tem uma aparência digna. Aqui e ali um ou outro acessório, como que a atestar a contemporaneidade: um relógio Swatch, umas pulseiras da moda… A espaços, Margarida olha a colega de soslaio como que mal refeita ainda da surpresa desta entrevista. Ocorre-lhe por vezes ficar a ouvir Carla como que em voz off, ao longe, e perder-se em pensamentos menos felizes. Ocorre-lhe lembrar-se que há vinte anos que o seu marido se alheia das responsabilidades domésticas; ocorre-lhe ainda que o seu dia-a-dia é preenchido com inúmeras tarefas, todas sempre tão carregadas de responsabilidade, que mal tem tempo para si própria. Ocorre-lhe, por fim, que não se lembra de ter tido a viagem da sua vida, fosse esta qual fosse, e que ouviu e registou com indisfarçável espanto que Carla, a jardineira, mal paga, já a tinha realizado e – pasme-se! – com o marido!...

Passada hora e meia, Cristina e Margarida abandonaram aquela casa. Um silêncio perturbador pesou sobre ambas, distraídas em rebobinar rapidamente as suas vidas, como se fosse possível fazer uma síntese de quarenta e poucos anos de existência naqueles escassos minutos e, ainda por cima, daí conseguir retirar uma conclusão que lhes servisse de guia. Cristina foi a primeira a quebrar o silêncio opressivo. Talvez por defeito de formação, a referência que surgiu em primeiro lugar foi uma obra que tinha acabado de ler e para a qual estabeleceu uma ponte. “Trata-se de um livro sobre o Estado Novo”, comentou em voz alta. “É muito interessante verificar que Salazar fazia assentar o seu modelo social na família, em detrimento do cidadão, do indivíduo. Defendia ele que a família deveria ser o primeiro dos elementos políticos do Estado, e daí a figura do chefe de família como porta-voz da mesma, o chefe de família como eleitor das instituições do Estado, e por aí fora. É claro que as consequências disto são por demais conhecidas, mas poderíamos sempre filosofar sobre se deverá a sociedade eleger a família como seu núcleo central ou, pelo contrário, libertar o indivíduo dessa carga e responsabilizá-lo, tornando-o num cidadão de pleno direito!”

Margarida sorriu e preparou-se para traduzir a reflexão da colega por um discurso menos académico. “O que eu sei é que a Carla que acabámos de entrevistar não tem grandes ambições, para além de construir uma família. O que já não é pouco! Mas basta-lhe isso, não procura outros caminhos, outras realizações. E, apesar das dificuldades económicas, consegue encontrar-se, graças a um estilo de vida comunitário, ao suporte de uma rede familiar e de amigos próximos, e isso é formidável! Ela conseguiu uma estabilidade emocional que lhe permite seguir em frente.”

Cristina concordou e sorriu. Pensou na dificuldade que sentia em eleger algum homem da sua família chegada que servisse de modelo masculino capaz para o seu filho adolescente… Pensou ainda em como deve ser confortável ter uma rede de apoios como a que lhe tinham relatado. Mas sabia também quanto valorizava a sua individualidade e como não se reconheceria facilmente dentro de um círculo fechado. Valorizava sobretudo o equilíbrio e, perante uma escolha entre segurança ou liberdade, decidia-se pelas duas. Quanto baste, reconhecia.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Doces da época e outros amargos de boca


O Natal não é uma data, é um estado de espírito. Leu. Dobrou o jornal em dois e ocorreu-lhe que gostaria de lhe dar mais corpo, a esse Natal que, pelos vistos, vive mais em espírito. Materializá-lo. Poder tocar-lhe, desvendar-lhe as formas, agarrá-lo e chamá-lo a si. Há já tantos anos que apenas o sonhava, que dele tinha saudades. Saudades de uma casa cheia, cheia de gente e de vozes, de risos e algum calor. Semicerrou os olhos para logo de seguida os abrir e fixar o tipo careca que aparentava apenas uns trinta de idade e mexia nervosamente o café. Um tipo muito vulgar, pensou, e talvez por isso desviou o olhar que percorreu um círculo em direcção ao jornal, dobrado ao meio, que repousava na mesa ao lado do prato com os restos do folhado. Seco, por sinal. Ainda com o Natal na cabeça, lembrou-se que gostava muito de azevias, principalmente das de grão, e que só costumava comer duas ou três em cada Dezembro. Apesar de gostar, o certo é que as enjoava facilmente e perdia a vontade até ao ano seguinte. Luísa tinha mão, fazia-as bem, mas desde que saiu comprava-as na pastelaria e não era a mesma coisa.

Saiu, com o jornal que continuava convenientemente dobrado debaixo do braço. Caminhou ao longo da rua, dobrou a esquina, atravessou outra rua e mais outra. Parou no semáforo para atravessar uma terceira e observou um casal com dois miúdos, um ainda criança, outro nem tanto, já adolescente, espigadote. Sorriu para dentro um sorriso pálido e novamente a ideia do Natal e do seu corpo entrou no seu pensamento, ou diria antes, no seu espírito. Não teve filhos e esse desejo esteve ausente durante muito tempo. Só chegou agora, sob a forma de vazio, um vazio acentuado a cada Dezembro, um maldito mês que no seu final se despedia sempre em tons carregados. Luísa, essa sim, sentira essa falta e talvez por isso as coisas azedaram entre eles, devagarinho, e mais tarde resolveu arejar e procurar preencher vazios, vários, noutros registos de vida.

O bolso do casaco vibrou com o toque do telefone. Atendeu. Falou uma conversa curta com o irmão. Desligou. Mais um problema resolvido - comeria as azevias em casa dele, com a cunhada e os miúdos, os sogros do irmão e uns primos do Algarve, que rondavam a mesa e o espaço em cada Dezembro e compunham a cena e aqueciam as conversas. Não seria o cenário idealizado, mas era o possível e, pensando bem, era de dar graças por ainda existir esta possibilidade, este aconchego. Agora devia ocupar-se com outros afazeres, como o que dar aos dois sobrinhos, cheios de tudo e falhos de coisa nenhuma, que agora os miúdos já nem espaço têm para desejar, de tão atafulhados que ficam nestas ocasiões. E noutras, também. Lembra-se que em criança desejou muito uma mota que demorou alguns anos a conquistar, mas hoje já não é assim. Resta saber como será amanhã, mais tarde, se já for difícil encher embrulhos bonitos, o que será das crianças, já grandes por fora, mas teimosamente pequenas por dentro… Enfim, pelo menos ele não sentiria na pele esse problema, uma vez que não tinha filhos.

Olhou para o relógio e sobressaltou-se com as horas, que o fizeram despertar para o presente. Continuou a andar pela avenida até que se deteve numa montra e o presente recuou, muitos anos. Sorriu um sorriso cúmplice, e resolveu-se a comprar uma mota que animava aquela pequena montra. Pronto, pensou, já tenho mais um problema resolvido.

domingo, 7 de novembro de 2010

O senhor João

Afastou com a ponta dos dedos a cortina branca da janela e espreitou pela vidraça. Ao fim da tarde, já pouca luz restava, já a sombra vinha comendo aquela rua estreita, o passeio, o prédio da dona Deolinda que morara mesmo em frente, no primeiro andar, mas João nem notava, de tal forma conhecia de olhos fechados a sua rua. Passava pouca gente àquela hora, quem regressava do emprego já tinha chegado e o frio não chamava para fora de casa, pelo contrário, percebia-se a luz das televisões por algumas das janelas que ainda permaneciam acordadas, antes do correr dos estores que anunciavam o sono dos seus donos.

João olhava para fora, com o olhar morno de quem tem tempo para esbanjar. Do terceiro andar do 26 assomou-se à janela uma rapariga, devia ter aí uns 25 anos, mais ou menos, não lhe sabia o nome, apenas que se tinha mudado para aquela casa onde dantes morava a dona Conceição e o senhor Ramiro, coitado, tinha ido desta para melhor faz aí uns cinco anos, à conta do coração que o desacompanhou de vez.

O olhar de João ainda se mantinha preso ao passeio da frente mas já o pensamento descia a rua, para se estancar à esquina onde João vivera anos a fio atrás do balcão da sua mercearia. Reinara sem rival naquela rua estreita e comprida, acompanhado pela Lurdes, sua mulher, que existia dentro de uma bata negra, na parte de trás da loja, encostada a um fogão que fritava rissóis e pastéis que as donas deolindas e outras levavam para os netos. O casal viera do Minho e assentara ali. A pequena mercearia de João e Lurdes era o centro daquele mundo estreito, habitado por adelaides, joaquinas, deolindas, ramiros e antónios. Havia também a dona Isaura, uma mulher da Beira Alta, madura e roliça, e o seu marido Carlos, que guiava a carrinha da Carvalhelhos. Dona Isaura era chamada à loja duas vezes por mês, para atender a chamada que vinha da terra. E lá descia a rua dona Isaura, apressada, com uma pequena angústia a assaltar-lhe o pensamento, sempre pronta para ouvir uma notícia má, a atender o telefone preto encafuado em cima da lista telefónica num nicho junto ao balcão. Será que a minha Aninhas está bem? Ai credo!, Deus me valha!, ouviu-a tantas vezes dizer.

A sua loja era um espaço acanhado, um pequeno mundo atafulhado de sacas de feijão e grão que era servido ao peso em medidas de lata e despejado para dentro dos sacos das freguesas. João inclinou a cabeça para trás e a sua memória trouxe-lhe o cheiro das compotas que a anafada Lurdes, dentro da sua inseparável bata preta e com um sorriso estampado na bochecha transpirada pelo fogão, costumava fazer. O do tomate era o que tinha mais saída, recorda, era o preferido da Isabelinha, que vivia no 72 e tinha duas irmãs, a Teresa e a Cristina. Muito diferentes, por sinal, essas gostavam era de ir lá a meio da tarde buscar iogurte natural da Vigor, em boiões de vidro, claro, que nessa época não havia outros.

Em frente vivia uma família com duas filhas. Destoavam deste mundo, não davam cavaco a ninguém. Muito independestes, dizia-se que ele era engenheiro e a mulher professora numa faculdade e vestiam uma roupas muito coloridas, em especial as raparigas. Mas esses não costumavam ir muito à sua loja, saíam cedo e voltavam tarde e não se davam com a vizinhança. Pois não, remata João, para si.

João espreita agora a rua em sentido contrário e olha até onde ela quase termina. A partir daí já não lhe desperta interesse, ali começava outro mundo que já não era o seu. Do seu, esse sim, tem saudades!... Era assim a vida daquela rua, há uns trinta e muitos anos. Um pequeno mundo fechado onde todos se conheciam. Todos, que tinham saído das suas terras e transplantado a ruralidade para esta rua, em doses mais controladas, é certo, mas ainda assim era uma nova pequena aldeia. Hoje João já não reconhece os passos de todos os que lá moram, nem lhes segue as horas, nem os caminhos. Da rapariga que parece ter 25 anos e que assomou por momentos à janela ele desconhece o nome. A sua mercearia há mais de uma década que deixou de vender enchidos minhotos para albergar brique-à-braque chinês. As donas deolindas foram morrendo; as casas, uma moribundam, outras renovam-se aos poucos para dar abrigo a gente sozinha ou a casalinhos jovens; e uma outra, lá ao fundo, do lado de quem desce, foi transformada em bar que já abriu e fechou vezes sem conta. É a vida!, suspirou João.

Libertou a cortina, presa dos seus dedos, afastou-se da janela e olhou para dentro, para o relógio de parede que lhe mostrava que eram horas de compor o estômago. E eu sem fome, protestou. Sobressaltou-se ao som do telefone e sorriu ao de leve com essa breve angústia, recordando-se da dona Isaura e das suas apoquentações em direcção ao seu telefone preto. Nós éramos assim, concluiu. Sem essas pequenas angústias nem sabíamos respirar: se alguma coisa mexia só podia ser ruim. Sorriu uma vez mais e chegou tarde junto do telefone. Branco, agora. Deixa, antes assim, disse num bocejo. Quem quiser que ligue de novo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Validação


Estava mesmo em cima da hora. Estacionou o carro na praceta, debaixo de uma chuva miudinha, abriu com dificuldade o guarda-chuva que já contava com duas varetas desamparadas, segurou como pôde a mala sempre aberta e saiu. Ultrapassou a esquina e entrou por aquela porta de alumínio, baixa, subindo as escadas e sentou-se à espera. Poucos minutos depois, ele abriu a porta, sorriu-lhe o sorriso habitual e, amavelmente, convidou-a a sentar-se. Então, como se sente?
Sentou-se.

Tentou passar rapidamente em revista a sua semana, na esperança de eleger acontecimentos dignos de registo. Na verdade, não lhe ocorria nada a que pudesse reconhecer relevância; a não ser que se sobressaltava ao mais leve movimento inesperado ou ao ouvir um som brusco; que se sobressaltava no desconforto dos seus dias, no desconforto de se saber a falar para o vazio e sem eco. Bom, mas isso não significava que alguma coisa tivesse acontecido, antes pelo contrário, já que não registava nenhum acontecimento digno de nota. A não ser que reflectisse sobre o facto de ao fim de todos estes anos continuar a falar para o vazio. Talvez isso fosse um problema geracional, era-o com toda a certeza, concluiu facilmente, já dentro da conversa com ele. Ele olhava-a e aguardava pacientemente que mais ideias surgissem e, quando surgiam, perguntava com uma certa cadência Quer ajudar-me a entender isso? Queria, seguramente. E avançava confiante pela teoria do conflito de gerações, discorrendo sobre o diferente valor dado às coisas e de como os conceitos abstractos tinham um entendimento diferente do dos conceitos mais materiais. De como, na outra geração, o respeito pelo outro ou a liberdade individual perdiam terreno para as questões mais concretas, como o custo das coisas e a segurança material, por exemplo.

Deixou sair um breve olhar pela janela, de soslaio, e voltou a vasculhar na memória recente a ver se descobria dias relevantes. Novamente de soslaio, o olhar virou-se para ele, que aguardava, pacientemente. Não sei que mais lhe possa contar, confessou timidamente. Ele sorriu, também um sorriso contido, e largou, a título de achega, Costuma dizer-se que quem está mal, muda-se...

Ela pensou ter compreendido. Remexeu-se na cadeira, cruzou e descruzou as pernas que sempre teimavam em não permanecer ambas na mesma posição, e resolveu-se a mudar. Foi a sua vez de sorrir um sorriso, desta vez para si própria. Para começar, iria sair dali, para o mundo real, e largar a muleta de quem nada mais lhe trazia do que ser eco e aplauso das conclusões a que já, por si mesma, tinha chegado.

Desceu as escadas, fez o caminho de volta e deixou-se envolver pela chuva miudinha que ainda marcava o final do dia. Saiu, com a sensação de ter levado um carimbo de validação em todas as reflexões que, habitualmente, nem achava que fossem suas mas apenas do senso comum. Ligou o rádio do carro e ouviu-o cantar a velha metáfora: Estava eu quase morto no deserto, e o Porto aqui tão perto!...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Forever young ou o síndroma de Peter Pan


Imagem tirada daqui


Mas é sexta-feira. Pior do que isso, é sexta-feira à tarde, um tempo em que ninguém tem vontade para reflexões.

O mote foi-me dado pela peça de teatro que vi ontem, Terra do Nunca, inserida no festival Entre Mitos, de Oeiras. Quatro actores brasileiros que no palco fizeram maravilhas e, de uma forma aparentemente descontraída, puseram em cima da mesa o tema talvez mais actual que possamos imaginar: a pior doença do nosso tempo é a velhice, o grande estigma, a única que verdadeiramente se esconde.

Como se anuncia na sinopse da peça, o tema tem por base a busca da juventude eterna através de uma abordagem transversal. Este espectáculo procura reflectir sobre como, actualmente, todos de todas as idades querem incluir nas suas vidas o repertório jovem de produtos culturais, roupas, hábitos, gírias e amantes. A dramaturgia mistura referências numa meditação cénica, sobre este nosso bizarro, belo, audacioso e perigoso ímpeto de ser jovem para sempre.

E, assim sendo, não cresço nem envelheço; simplesmente DURO. Congelo a minha imagem e brinco com o tempo, faço-lhe orelhas moucas, ignoro-o. No fundo, temo-o porque o sei incontornável e, por isso mesmo, finjo ignorá-lo. Não cresço nem envelheço porque me recuso a acrescentar ao meu rosto, ao meu corpo e à minha rotina as marcas do tempo e da apendizagem. Porque, deliberadamente, me cristalizo nesse momento ideal que julgo ser a juventude ou pouco mais do que ela, me desresponsabilizo, sigo em frente de olhos vendados sem projecto algum que não seja viver os códigos ditos jovens, divertir-me e não pensar.

Forever young, I'm gonna be forever young...

Nem sequer "adolescemos" mais, porque não transformamos nem inovamos, como seria próprio da adolescência, nem pretendemos mudar nada. Apenas queremos manter a nossa imagem eternamente... jovem??...

Fotografei você na minha rolleiflex / revelou-se a sua enorme ingratidão...*

Terra do Nunca. É esse o nome da peça levada à cena, numa clara alusão a Peter Pan. Talvez porque nunca é o contrário de sempre (ex: vais estar sempre ao meu lado; vou amar-te para sempre, etc.). E, então, caminhamos em direcção ao nunca, uma espécie de negação deste sempre que parece amarrar-nos, agrilhoar-nos, comprometer-nos.

Parabéns a Ivan Sughara e Amigos, pelo magnífico momento de teatro e reflexão. Mesmo.

Mas, obviamente, esta reflexão não estará concluída (alguma vez o estará?...) sem antes considerarmos o modelo das gerações anteriores, ao qual nos propomos opor. Elas pareciam caminhar em frente, assumindo as responsabilidades naturais da vida, mas carregando um cinzentismo que nós, actualmente, rejeitamos. E não será de rejeitar? Claro que sim, já que a vida é para ser vivida e, de preferência, a cores. Mais uma vez, há que procurar o ponto de equilíbrio e aceitar que a aprendizagem deixa marcas e entendê-las como troféus. O problema é que não estamos a ser educados nesse sentido e, assim sendo, esse equilíbrio anda longe. Dão-se alvíssaras a quem o encontrar.

* Verso da canção Desafinado, de Tom Jobim.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Legenda de um olhar...

O tempo tinha-o de sobra, apesar do pouco que lhe restava.
Cada ruga, cada traço, carregava anos de dias pesados, duros de trabalho.
Levantou-se cedo desde o berço, um caixotinho de tábuas perto da braseira. Cresceu e viveu acartando lenha, tratando da criação. Criou outra também, um rancho de seis filhos, quase todos ausentes agora, tirando a Laurinda que tinha ficado por perto e que agora ganhava a vida atrás do balcão, desfiando tecido a metro para uma freguesia pouco exigente e ainda menos compradora. Para além disso cuidava dela. Todos os dias lhe levava o almoço, lhe fazia a cama, lhe arrumava a casa, que Bárbara já não se endireitava como antes.

E esta ficava a olhá-la, quieta e silenciosa. Olhava-a e reconhecia os velhos gestos, os de sempre, que tinha passado à filha na rotina da lida da casa. Olhava-a num sentimento de missão cumprida, de ciclo fechado. Olhava-a na certeza e com a segurança ganhas pelo tempo. Do passado e do que lhe restava.

quarta-feira, 24 de março de 2010

As construções de Joana

Imagem tirada daqui


O mundo de Joana assenta nas rendas, nos bordados, nos paninhos, nas linhas, nos berloques, nos cabelos, nos botões. Assenta nos talheres de plástico, nos tachos, nos espanadores, nas meias, nos comprimidos, nas santinhas, nos objectos diários, nas supostas inutilidades, na caixa vazia, nas formas de todas as formas.

O mundo de Joana transporta-nos numa viagem pelo feminino, como no caso de A Noiva, um imenso lustre feito de tampões higiénicos, onde facilmente caímos na tentação de o ler como uma metáfora à sexualidade e fecundidade femininas. Ou na mulher de Burka que se despenha até se estatelar no chão. Ou no sapato da Cinderela, numa provável alusão à mulher-gata-borralheira, cheia de tachos... Ou, ainda, como no caso de Flores do Meu Desejo, um conjunto de suaves e delicados espanadores cuja forma faz lembrar um útero.

Este mundo dialoga em permanência e cruza-se em jogos de linguagem que também vão beber à tradição e à história, como no conjunto Coração Independente, num resultado magnífico que faz lembrar a filigrana e os corações de Viana, ou como na carripana apinhada de Nossas Senhoras de Fátima.

Mas também é um mundo grande e colorido como em Contaminação, uma alusão à globalização e à sociedade de consumo, ao desperdício. Num mundo que vive assente na imagem, ela pega em objectos do quotidiano, redimensiona-os até atingirem proporções gigantescas e confere-lhes outros significados que não os originais. Recicla-os. Cria outras palavras para outras imagens.

segunda-feira, 1 de março de 2010

News? What news?!

Imagem tirada daqui

Devia chamar-se Rosa. Ou Ana. Ou ter um nome um pouco mais esticado e responder por Marília. Ou Lucinda. Por que nome dava acordo de si também pouco importa. Importa antes saber que já era velha, usava lenço na cabeça e umas peúgas de lã que apareciam de dentro de uns chinelos. Importa ainda entender que procurava o caminho da normalidade por entre um monte de escombros que uma mãe, a natureza, lhe havia posto à frente e que eram grandes e altos e escorriam lama, o que tornava difícil a caminhada, ainda por cima para esta Ana ou Rosa ou Marília que teimava em preencher o dia com a normalidade interrompida pela catástrofe. Por esta e pelo Luís. Ou seria Nuno? Talvez Francisco ou Pedro. Fosse como fosse, seria um nome de gente muito mais nova do que ela - a Ana ou a Marília.

Este Nuno tinha chegado à ilha trazido pela catástrofe. Um filho da mãe, natureza, enviado para este fim-de-mundo alagado e lamacento, para matar a sede que uns têm do sangue dos outros. A natureza criou mais uma vez uma bela oportunidade de negócio. Após a catástrofe ficaram os escombros e a desgraça dos que ficaram sem tecto atrai outros bem recostados no sofá. Isto é mesmo assim, pois os Franciscos também têm de ganhar a vida e pagar o tecto e o sofá lá de casa. E à falta de imaginação ou competência maior, e enquanto não nos chegar outra grande desgraça (que há-de vir com toda a certeza, é uma questão de os Pedros e os seus chefes terem um pouco de paciência), há que fazer render as lágrimas, mesmo quando a hora é já de andar para a frente. E é por esta razão, que tudo dita e que nos diz o que havemos de ver naquele aparelho em frente ao sofá, que o Luís perguntou à Rosa como iria ela conseguir percorrer o caminho até ao que restava da sua casa, ao que esta Ana respondeu, desembaraçada, Subindo por aqui acima, como os outros fazem! E como a Nuno já lhe faltassem ideias para encher mais esta reportagem vazia de novidades, atirou uma derradeira e fundamental pergunta para quem ainda não tivesse entendido bem há quantos anos Marília vivia sobre esta terra e da dificuldade que, manda o bom senso, ela deveria sentir em galgar os pedregulhos do caminho: Diga-me só uma coisa: que idade tem?, ao que Lucinda responde, já de costas viradas, Ai não sei, são tantos que já nem me lembro…

E, não sem algum desdém, fez-se ao caminho. Onde quer que este estivesse…

sábado, 9 de janeiro de 2010

Sem pés nem cabeça!...

Imagem tirada daqui

Quem não recorda o bem-humorado Jô Soares em Viva o Gordo! ? De vez em quando, ocorre-me uma das deixas mais bem conseguidas desse programa – das muitas! -, e dou por mim a repetir para dentro: Esse chão que eu amo, esse povo que eu piso!... E vem esta memória e o seu trocadilho a propósito de, pela enésima vez, ter sentido que esse chão que eu amo não nutre por mim o mesmo sentimento. Só pode! Lisboa, cidade cheia de luz, encanto e muitas outras graças, tem o chão mais "característico" de todos: uma calçada portuguesa, muito bonita, mas esburacada como não há outra. Um verdadeiro rendilhado de buracos, uma espécie de puzzle inacabado. E como para provar que a imaginação não tem limites, este chão desdobra-se em variáveis múltiplas, como, por exemplo, calçadas que quando por lá passamos mais parece que nos equilibramos com muito esforço numa difícil travessia sobre um rio, tentando acertar nas pedras para não cairmos à água. Aqui não há água, antes uns intervalos tão grandes entre cada pedra do caminho, dando a impressão que caminhamos por antigas calçadas romanas. Eu sei que nasci numa cidade repleta de História, mas também não era preciso levar a coisa tão a peito!

Imagino que seja o paraíso dos ortopedistas e endireitas! Esta cidade não é feita para ladies de salto agulha; é um chão de machos de sola rasa. Será o choro das pedras da calçada, frase tão portuguesa, a melhor expressão desta realidade? Ultrapassado o trocadilho, aqui fica uma reivindicação: ou a salvação deste chão português ou a salvação dos pés dos portugueses - pelo menos, das portuguesas! ;) - mas, por favor, quem de direito que se DECIDA!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Crescer de forma consciente: a desconstrução de um mito


Imagem tirada daqui


A educação sexual nas escolas é um tema que já atingiu a maioridade. É, por assim dizer, um jovem adulto que, no entanto, continua iletrado. E iletrado porque, na realidade, nunca o levaram à escola. Desse lugar apenas conhece a entrada ou, melhor dizendo, apenas sabe que a escola existe, sonha com ela até, mas continua a ser o patinho feio das disciplinas leccionadas. Filho de uma família numerosa, com muitas matérias, continua esperando, no fim da fila do fundo atrás das outras disciplinas, as tais que, essas sim, são dignas de verem a luz do dia.

A propósito da educação sexual nas escolas – ou da falta dela -, chamo a atenção para uma entrevista de Manuel Damas, sexólogo e formador na área da educação sexual, publicada em educare.pt. Devo dizer que concordo com tudo o que lá foi dito e que por isso mesmo me escuso de tentar discorrer sobre o tema, dando a palavra a quem percebe do assunto. Apesar da razoável dimensão do texto, não desistam de o ler porque vale bem a pena. Aqui fica.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sim ou Não ao referendo?

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A propósito das últimas notícias sobre a possibilidade de um referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, voltei a ter um pensamento já velho, de recorrente que é. Parece-me óbvio que matérias que se prendem com questões de consciência não podem ser referendadas. Não são, por conceito, referendáveis. E isto porque, se se trata de uma matéria que remetemos para a nossa consciência, e que não é, portanto, matéria objectiva, então estaremos a cortar a possibilidade dos que querem agir pelo SIM se o resultado desse referendo tiver sido NÃO. Ou seja, só se pode agir em liberdade, de acordo com a consciência de cada um, se o resultado de um referendo for SIM; caso contrário, não resta ao cidadão qualquer possibilidade de escolha, após o referendo, não será assim?

Independentemente da posição que cada um de nós possa ter sobre a matéria, uma coisa é certa: neste género de questões, que se prendem com a consciência de cada um, o resultado de um referendo só é vinculativo se concluir pelo NÃO, já que o SIM não obriga ninguém a agir em conformidade. Quem não concorda com a matéria em causa logicamente que não a seguirá.

Certamente que todos já perceberam o quanto um instrumento cívico e de suposta liberdade como o referendo pode ser manipulado e usado para coarctar precisamente a liberdade. Daí que, referendo sim, mas só para temas concretos e objectivos e nunca em questões de consciência. Sob pena de estarmos a interferir na consciência dos outros.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Oxalá

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Nesta época de Gingle Bells, cada vez com menos espírito e mais matéria, principalmente da que enche as bancas das lojas sempre iguais, aguardo paciente que o espírito desça e me ilumine; e o pior é que ele, cada ano que passa, tarda em descer.

De tudo o que se tem inventado sobre esta época e sobre o dito espírito, recordo a propósito uma troca de ideias com alguém que me citava outro alguém que, recentemente, tinha proferido umas curiosas palavras:

O Natal não é quando um homem quiser. Ele acontece quando alguém nos quer.

Fiquei a magicar naquela frase, que foi tomando forma até se me provar ser verdadeira. Ou, melhor dizendo, ser um fim em si mesma, um objectivo. Se ele (Natal)é magia, então não basta pensarmos que conduzimos e lideramos e que tudo acontece por nossa exclusiva iniciativa. Ou melhor, a magia estará na reciprocidade: depende do que o Outro vê em nós o que, por sua vez, depende daquilo que nós lhe daremos a ver.

Isto pode parecer meio embrulhado. A culpa deve de ser do excesso de açúcar no cérebro, certamente, fruto desta época… Mas numa altura em que se fazem os tradicionais votos de mudança, à vista de um novo ano que nos bate à porta, talvez o melhor voto seja que consigamos ser capazes de aproveitar as oportunidades que ele nos trará e reconhecer nos pequenos nadas a possibilidade de sermos felizes.

Oxalá.