segunda-feira, 23 de novembro de 2009

When I'm sixty-four...

Imagem tirada daqui

Viajavam de Turim para Milão. Dois italianos, de pele e cabelo brancos e olhos claros. Um homem, outro mulher. Viajavam, seguiam em frente pelas suas vidas. Viajavam embalados pelo ritmo monocórdico do comboio e seguiam felizes, tranquilos.

Ela encostava-se-lhe ao ombro, aconchegava-se. Tinha um semblante de avozinha, calmo, sereno, aninhada que estava como um gato, aceitando a protecção desse encosto. Ele, igualmente feliz naquela serenidade da partilha, avançava pausadamente na conversa, de forma tão pausada que me era permitido entrar por ela dentro sem que a língua estranha erguesse qualquer barreira. Completamente clara e transparente, como se da minha se tratasse.

Ele ia-lhe contando o que se vai passando pelo Mundo, esse mundo endiabrado e confuso. Explicava-lhe as notícias, desdobrando-lhe as ideias de modo a que ela as compreendesse. Ela, numa espécie de torpor morno e adocicado, lá ia ouvindo, aparentando um interesse muito moderado, embalada pela voz dele que, essa sim, era o seu presente e a sua realidade e aquilo que lhe aquecia o espírito. Ele oferecia-lhe, ainda, pequenos nadas da sua vida passada: “este relógio que a minha mulher me ofereceu…” ou ainda “quando fiz aquele passeio na montanha…” Momentos que decerto ela não partilhou, mas que vive agora através do som daquelas palavras e que imagina, compõe cenários, acrescenta tons, cria enquadramentos. Tenta compreender.

Atrevi-me a traçar o perfil daqueles dois seres felizes que viajavam à minha frente e que durante duas horas partilharam comigo um momento das suas vidas. Fui uma personagem passiva e silenciosa, que os fitava e inevitavelmente ouvia. Não seriam um casal, daqueles com papel passado e registo oficial; antes seriam dois namorados. Antigos ou recentes não o adivinhei, mas de certeza que namorados seriam, pois não sofriam do pó do tempo e do desgaste que o quotidiano deixa nas longas vidas em comum. Pelo contrário, viviam momentos de ternura, dos tais que a tradição não nos habituou a testemunhar em pares desta idade. A muito custo, desviava de tempos a tempos o meu olhar comprometido desta felicidade sénior, e um sentimento de pequena inveja, o desejo do também quero, ia crescendo dentro de mim.

Resta a esperança de que o sorriso é possível numa qualquer idade. Will you still need me, will you still feed me, when I’m sixty-four?...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Baços brilhos...

(imagem tirada da net)

A vírgula entrou singela, altaneira, no seu vestido coleante. Desliza pela sala, dengosa. Recosta-se num sofá, com ar absorto e distraído.
"Vamos dançar?", pergunta. Ele. Baixo e atarracado, como que carregando sempre um peso sobre a sua cabeça. Vestido de preto, com ar um tudo nada fora de época, há muito que se tinha habituado a ver os outros de costas, rumando em direcção contrária à sua, desprezando-o e ignorando a sua presença. Ou, noutros dias e noutras horas, chamando-o para tarefas que não eram as suas, confundindo-o com outros parceiros, subalternizando-o.

Ela, sempre muito atarefada, sendo constantemente chamada a figurar em qualquer cenário, sempre presente. Ela, olhando-o de baixo para cima – não muito, dada a pouca estatura dele, coitado! – abriu um sorriso estreito e descorado, para deixar através dele escorregar um desinteressante “Não, obrigada…”

“É o costume”, pensou ele. Arrastou-se até ao balcão, pediu um gin e ficou a observar quem entrava. Viu aproximar-se aquele desmiolado do ponto de exclamação. Alto e magro, elegante até, não passava despercebido naquele círculo de acentos e letras desencontradas. Em tempos constou que tinha tido uma infância atribulada, e uma vida com questões mal resolvidas. Mantém sempre aquele ar admirado, espantado mesmo. “Bahh, mais parece um miúdo hiperactivo…”, concluiu o ponto e vírgula, “nunca entendi porque lhe dão tanta importância…”

Olhou na direcção do sofá onde ela permanecia recostada, agora acompanhada por dois pontos. “Sempre iguais, estes dois”, pensou, abanando levemente a cabeça. “Desde que os conheço que andam sempre juntos, inseparáveis, um verdadeiro Dupond e Dupont…"

Viu-a levantar-se e sorrir. Os dois pontos permaneciam no sofá, agora um pouco abandonados à sua sorte. Ela, a vírgula, altaneira, deslizava no seu vestido coleante e cumprimentava, dengosa, o travessão e os parênteses. Desdobravam-se em elogios e sorrisos, trocavam olhares cúmplices e gulosos e ela, olhando ora para um, ora para outro, começava a sentir uma leve tontura na sua cabeleira farta e loura, sem se decidir a qual prestar maior atenção. “São tão parecidos”, coube-lhe agora pensar, “quase se confundem…”

Ao fim de meia-hora de trivialidades, a vírgula voltou para o seu sofá, abriu a bolsinha da maquilhagem e retocou o rosto, onde leves traços se vincavam já. “Há que manter o brilho”, gracejou para si própria.

Ergueu a cabeça e os seus olhos procuraram os outros acentos. Naquela confusão de letras soltas lá os vislumbrou, ao fundo da sala, por entre uma atmosfera já pesada de fumo, aos seus admiradores, que se derretiam agora perante a nova frase da moda, que acabara de entrar. "Novos brilhos", pensou ela…