O barco foi de saída, faz hoje precisamente dez anos. José Cardoso Pires saiu, de vez, passou a fronteira, depois de várias ameaças para transpor esta barreira que separa a vida da morte. A mais conhecida, talvez, em 1995, três anos antes da derradeira, em que o escritor, vítima de um acidente vascular-cerebral, vagueou no limbo para, recuperada a memória e a consciência do real, nos passar esse testemunho em De Profundis: valsa lenta, editado em 1997. Um testemunho escrito do tempo em que ele foi o Outro, tão ausente e por isso indiferente a todos e a tudo, alheado de si próprio.
Lisboeta por adopção, José Cardoso Pires foi mais um a juntar a sua voz para enaltecer a Cidade Branca, como lhe chamou Alain Tanner. No seu livro Lisboa - Livro de bordo: vozes, olhares, memorações, percorre as ruas da cidade, temperando-as das sensações que colhe a cada passo, das emoções, dos pensamentos. É uma Lisboa subjectiva esta, na primeira pessoa, como o é a cidade de alguém cheio de alma, cujo olhar se detém nos pormenores e os traduz numa escrita depurada. José Cardoso Pires, citando alguém aqui sem nome, e ainda a propósito de Lisboa, anui: A primeira vista é para os cegos! Através de praças e estátuas, contando histórias, lê a cidade interpretando-a pelos sentidos:
É que isto aqui não é só luz e rio, sabes bem. Não é só geografia, revelações ou memórias e o restante diz-que-diz dos manuais e dos oradores frustrados. Há vozes e cheiros a reconhecer - cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas das docas do Tejo; o do verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns dos aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro á porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; há, no inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes.
E acima de tudo há a voz e o humor, o tom e a sintaxe, aquilo que te está, cidade, mais no íntimo. Falo, é claro, do imaginário vocabular e da construção da frase que por si sós se fazem ironia.
E mais poderia citar, mas não vale a pena. Muitas outras obras ele deixou, todas elas referências maiores da nossa literatura, mas eu escolhi centrar-me nesta, talvez não por acaso mas sim pela atracção partilhada pela capital de Ulisses, como lhe chama. A nossa.
Lisboeta por adopção, José Cardoso Pires foi mais um a juntar a sua voz para enaltecer a Cidade Branca, como lhe chamou Alain Tanner. No seu livro Lisboa - Livro de bordo: vozes, olhares, memorações, percorre as ruas da cidade, temperando-as das sensações que colhe a cada passo, das emoções, dos pensamentos. É uma Lisboa subjectiva esta, na primeira pessoa, como o é a cidade de alguém cheio de alma, cujo olhar se detém nos pormenores e os traduz numa escrita depurada. José Cardoso Pires, citando alguém aqui sem nome, e ainda a propósito de Lisboa, anui: A primeira vista é para os cegos! Através de praças e estátuas, contando histórias, lê a cidade interpretando-a pelos sentidos:
É que isto aqui não é só luz e rio, sabes bem. Não é só geografia, revelações ou memórias e o restante diz-que-diz dos manuais e dos oradores frustrados. Há vozes e cheiros a reconhecer - cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas das docas do Tejo; o do verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns dos aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro á porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; há, no inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes.
E acima de tudo há a voz e o humor, o tom e a sintaxe, aquilo que te está, cidade, mais no íntimo. Falo, é claro, do imaginário vocabular e da construção da frase que por si sós se fazem ironia.
E mais poderia citar, mas não vale a pena. Muitas outras obras ele deixou, todas elas referências maiores da nossa literatura, mas eu escolhi centrar-me nesta, talvez não por acaso mas sim pela atracção partilhada pela capital de Ulisses, como lhe chama. A nossa.
22 comentários:
Cada um de nós tem as suas preferências, em relação aos bons escritores.
Nem você... (nem eu) fugimos à regra.
Bjs
Paula,
lembrança oportuna, também um dos meus escritores preferidos, a beleza e o realismo como descreve Lisboa ("...uma cidade capaz desta e de tantas variantes sobre cada tema, longe de se repetir, recria e ganha uma unidade plural"...)ou a realidade da sua "...viagem à desmemória".
bom domingo :-)
Uma pessoa ausenta-se e, pronto, tanto para ler...
Realço esta homenagem a José Cardoso Pires. Belíssima!
Vieira Calado,
Ah pois não. É assim mesmo, não?...
Uma boa semana!
Flip,
Bem lembrada essa (dele) "realidade plural". Rima com a "desmemória" de que fala... São coisas que andam de mãos dadas.
Uma boa semana!
Lb,
Ausenta-se, sim... :):)
Uma boa semana!
Até sempre José.
Cheers
Tim,
Até!
Uma boa semana.
Paula,
não sou da capital de Ulisses, mas comungo de muitos desses sentires...
Bela e justa homenagem! a um Homem de quem pouco se fala...
Obrigada.
boa semana
um sorriso :)
mariam
Mariam,
Desde a sua morte, há 10 anos, que pouco tenho ouvido falar dele. Isto é por ciclos de moda: ou se está nela, ou não...
Sorriso retribuído :)
também escolhi este livro, no mei casario, Paula...
bjs
Luis Eme,
Já vi, Luís. Homenagem partilhada :) Já se fala da Lisboa de José Cardoso Pires, a par da Lisboa de Pessoa ou de Eça de Queiróz. Acho justo.
Bjs
Merecida homenagem - sem dúvida - aquela desnudificação no discurso -lúcido - sóbrio - real - que irradia presenças...
teu beijo estimada amiga Paulinha
Eduardo
Eduardo,
Obrigada pela visita e apareça mais vezes.
Gostei especialmente deste seu texto por isso não resisti e citei-o na minha crónica da antena 1...
PRD
Tenho muito poucas informações acerca deste autor. Todavia, pela pequena amostra que nos deu, além da sua análise, acredito um dos grandes.
Sabe que sigo de olhos vendados todas as suas indicações, exceto Mamma Mia com trilha sonora do Abba. ;)))
Um beijo!
P.S.: Conheci, provei e aprovei o Pastel de Belém numa rede de restaurantes de comida árabe existente aqui no Brasil.
Se feito por árabes é tão bom, imagine por portugueses de Belém.
P.P.S.: Se gostar de música medieval e quiser "ouvir" o meu post de estréia (Dança Medieval) no blog O Bar do Ossian, clique aqui
PRD,
Costumo ouvir com alguma regularidade o seu programa e ontem ouvi a sua Janela Indiscreta e a referência que fez ao meu post. Ainda bem que gostou :)
Oliver,
Gostei dessa alusão ao Mamma Mia! Ah ah! Mas sabe, nem só de coisas sérias vive o Homem, não é assim Oliver???...
Acredite, os nossos pastéis de Belém são os melhores do mundo! :)
Já ouvi a sua música medieval - soberba! Parabéns, Oliver! :)
Beijo!
Como participa de um coral, resulta que também é música. Bem vinda ao clã. Quando estava na faculdade, também fiz parte de um coral por um ano. Foi uma ótima experiência.
Acho que não viu/ouviu. Em meu blog, no post anterior ao atual, intitulado Coleções de Pickwick, há três vídeos com interpretações minhas em violão acústico. Duas, de jazz; outra, mais universal, mas com um toque flamenco.
Oliver,
Músico, eu? Bem, dentro do género... ;);)
Por acaso não vi, não, mas vou lá cuscar... já lhe digo qualquer coisa.
tenho pena de não ter ouvido...de qualquer modo é uma menção mais do que justa....
Luís Galego,
Vindo de ti é muito lisonjeiro :)
Bem-hajas!
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