sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Diálogos distantes...



Olá linda,

Estamos de partida para Aurangabad, onde vamos passar uns dias a visitar umas grutas budistas. Enquanto aguardo a hora de partir para a estacão (um magnifico exemplar do colonialismo britânico), uso esta meia-hora para te mandar noticias.

Tenho-me lembrado muitas vezes de ti, ao percorrer estas ruas barulhentas e malucas de Bombaim.

Há dias, deambulando por uma rua "sem trânsito" (o que é impossível, porque mesmo assim há bicicletas, carroças, carrinhos e outros "veículos" de toda a espécie, a fazer-te desviar o tempo todo), deparamo-nos com uma família daquilo a que chamo "fazedores de grinaldas", à falta de melhor. São pessoas cuja profissão é tecer grinaldas lindas de flores e folhas frescas, que as pessoas compram para levar aos deuses do templo, nas suas rezas diárias. Habitualmente vês pessoas isoladas, mas aqui estava uma família inteira, com cerca de 10 pessoas dos 70 aos 4 anos, cada um com a sua tarefa, numa verdadeira "indústria" familiar.

Parámos para registar o momento, que é o que nós, turistas/viajantes, fazemos e aproveitámos também para comprar duas grinaldas, que pusemos ao pescoço.
O P. tirou a dele passados uns minutos, porque achou que estava a dar demasiado nas vistas, mas eu estava encantada com o meu colar de flores cor-de-laranja, que tinha umas florinhas brancas na ponta que deviam ser de jasmim...cheirava tão bem!...

Umas passadas mais à frente, lá estava um mini templo, dedicado não sei a que divindade (são milhões... e só consigo reconhecer Shiva e Vishnu), com os seus sacerdotes, com as suas rezas e toques no sino.

Resolvemos parar para oferecer as nossas flores.

Apesar de se tratar apenas de um altar, rodeado de cadeiras de plástico velhas, que faziam uma espécie de corredor de acesso, tivemos que deixar os sapatos "à entrada", para nos aproximarmos da divindade.

Tirei o colar do pescoço e fui toda despachada atrás do P., oferecê-lo ao deus, mas fui rapidamente enxotada por um sacerdote que, com gestos, me explicou que não podia oferecer uma coisa que tinha estado em contacto com o meu corpo.

Afastei-me, de orelha murcha, e fiquei a ver P. a fazer o seu ritual, que consiste no seguinte: faz-se uma vénia, depois dá-se um toque no sino, ofereces as flores ao deus e enfias o indicador numa taça de cobre com um pó escarlate que colocas na testa (no terceiro olho).
P. virou-se, todo feliz, com uma pinta no meio da testa e eu, toda invejosa, olhei-o a sentir-me já não humilhada mas injustiçada. Afinal de contas, ele também usou o colar, só que o sacerdote não viu.

Mas o sacerdote deve ter percebido que eu não era má pessoa, era apenas ignorante, e teve pena de mim. Com gestos, disse-me que já podia fazer a minha oferenda (as flores já deviam ter perdido a minha energia impura...). Até avancei de chinelas calçadas e tudo!

Mas voltei para trás para as deixar “à porta" do tal corredor de cadeiras. Queria fazer tudo como deve ser...
E lá fui, toda nervosa com a benesse que me tinha sido concedida; fiz o que tinha a fazer sem olhar para a cara do deus, para mostrar a minha humildade...

Tenho uma foto com a pinta vermelha na testa. Depois mostro-te.
Fica-se esquisito nesta terra, não achas?

Bom, minha querida, o P. veio chama-me. Parece que são horas de nos fazermos à estrada…
Ah... Já sei atravessar ruas! Como quase não há passadeiras, e mesmo quando as há não se percebe de que lado vêm os carros, colo-me a um indiano e atravesso pertinho dele. Pelo menos, sei que ninguém me atropela, mesmo que buzinem furiosamente (mas essa é a musica de fundo e já nem ligo...).

O P. atravessa como um verdadeiro hindu, fico fascinada…
T.

Eu fiquei para aqui toda pequenina, neste meu cantinho, cheia de pena de não estar aí ao pé de vocês, especialmente de ti, minha linda, para poder gozar de todas essas sensações... Ai, quem me dera! Deve ser um mundo novo, mesmo que velho seja, mas cheio de coisas outras para os nossos olhos, não é?...

Gostei muito que te tivesses lembrado de escrever. Sabes, antigamente fazia-se isso: as pessoas iam viajar, ou simplesmente moravam do lado de lá das outras, e escreviam-se. Hoje já não, o que é pena. Por isso este teu mail soube-me a pouco, ainda por cima porque não o esperava e assim a surpresa foi maior. E boa! Vou guardá-lo para o saborear devagarinho, aos poucos.

8 comentários:

Flip disse...

Paula,
e que belo mail para um diálogo distante, partilhar outras realidades, outro estar, outras tradições e costumes, mas saíu-se bem, mesmo sem a condescendência inicial do sacerdote, valeria a intenção.
E é tão bom viajar... :-)

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
Que bela missiva!


India,... Bombaim ... um dos meus "destinos" a fazer ... um dia, espero!

"E lá fui, toda nervosa com a benesse que me tinha sido concedida; fiz o que tinha a fazer sem olhar para a cara do deus, para mostrar a minha humildade..."

Paula, não pare,
escreva muito, assim... maravilha.

bom fim-de-semana
um sorriso :)

mariam

Luis Eme disse...

pois é, Paula, dantes recebiam-se e enviavam-se postais ilustrados...

bjs

Paula Crespo disse...

Flip,
É bom, pois. E viajar também é partilha: de experiências, de emoções, de sentidos. É tudo isso e muito mais...
Bom fim-de-semana!

Paula Crespo disse...

Mariam,
Um destino diferente, a ir, quando puder.
Esse parágrafo pertence à carta que recebi da minha amiga: ela é que foi à Índia, eu fiquei-me por cá. Mas é deliciosa, não é? :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Luis Eme,
Eu cheguei a enviar e receber vários...
Bjs

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
pois eu entendi que era sua a escrita criativa...
pois então, a sua amiga escreve divinamente!

sorrisos :)

Paula Crespo disse...

Mariam,
Pois é. Minha é a resposta à carta, os dois últimos parágrafos.
Bjs