quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Outras leituras para este Leitor...

The Reader, de Stephen Daldry

Alemanha, anos 50. Pós-guerra e uma Berlim ainda devastada: as ruas apresentam as marcas das armas e os habitantes as marcas da derrota. Pressente-se a crueza dos dias, a dificuldade do recomeço.

Este é o cenário inicial de O Leitor (The Reader), um filme que, segundo quase todos, nos transporta para os dramas do Holocausto e de uma Alemanha envergonhada e traumatizada pela sua História recente. Verdade mas redutor, a meu ver, já que este filme diz muito mais do que isto. Senão vejamos:

Um adolescente de 15 anos (Michael Berg) conhece por acaso uma mulher, com cerca de 35 (Hanna Schmitz). Apaixona-se por ela e vivem uma relação, naturalmente clandestina. Até aqui nada de novo, não fosse o caso de ela gostar que lhe lessem livros e vivesse essas histórias de forma tão intensa como se assistisse a uma peça de teatro que muito lhe dissesse. A relação entre ambos prossegue, a um ritmo comandado por ela e estimulado pela leitura dos clássicos que ele lhe faz chegar. Um belo dia, ela desaparece sem deixar rasto e, oito anos mais tarde, ele descobre-a como ré num julgamento de um caso de Holocausto, onde ela se lhe revela como tendo sido guarda prisional em Auschwitz e tendo sido co-responsável pela morte de prisioneiras judias.

Esta é a história óbvia do filme, trazendo para a boca de cena uma vez mais os dramas da II Guerra Mundial, tema aliás ressuscitado ultimamente por outros filmes como Resistentes, O Rapaz do Pijama às Riscas ou ainda Valquíria. Contudo, o aspecto mais interessante e talvez mais inovador desta história reside no perfil psicológico da personagem de Hanna, uma mulher que aparenta uma origem talvez rural, analfabeta, e com um quadro mental muito próprio, em que o seu analfabetismo lhe dita as regras de conduta e lhe confere padrões éticos diferentes dos das outras pessoas. O seu ar sofrido leva-nos a pensar que se envergonha do seu passado como guarda prisional. Puro engano. Hanna apenas se limitou a cumprir a sua função o melhor que sabia e este ar sofrido advém antes de uma contenção de carácter, da sua obsessão em esconder o seu analfabetismo, limitação essa que, a seus olhos, a diferenciaria dos outros, qual alien de outro planeta.

A moral, a ética do direito (patente no respeito que a personagem Michael Berg revelou ter por ela, enquanto ré, ao não revelar o segredo de Hanna: a sua incapacidade para ler), o rígido quadro psicológico dela, que até na sua morte se revelou, uma vez mais, coerente (tem de morrer já que foi condenada a prisão perpétua...) são, quanto a mim, as pérolas deste filme que, não sendo arrebatador, promove uma reflexão muito interessante.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Small talk para dias cinzentos...

Small Talk 11" x 14"Acrylic on canvas panel (retirado de aqui)


Tenho que aprender a falar, pensou. Aprender a gastar palavras pequenas, juntá-las em comboios formando frases conhecidas, daquelas que toda a gente reconhece facilmente e sem esforço, daquelas que não obrigam os outros a pensar muito, ou sequer a pensar um pouco, e para as quais toda a gente conhece antecipadamente as respostas. Confortáveis frases, sobre banalidades, queixumes recorrentes e inconsequentes, dos tais que existem apenas para preencher o vazio da falta de palavras com mais sentido, enjeitadas pelas bocas e cabeças de muitos.

Esgotou o tema tempo, estafou-o, falou dele até à exaustão que a chuva e o vento lho permitiam. Deu-lhe uma boa parte da manhã, nos encontros repetidos e rotineiros de todas as manhãs. Trocou as nuvens carregadas pelo desejo do sol ausente, e regressou à neblina do vazio de palavras sem sentido.

Faz pela vida, continuou pensando. Constrói uma vidinha de pequenos nadas, enquanto esperas pelos grandes, desconhecidos, e aprende a falar do tempo, dos gatos, da vizinha da frente ou do lado ou de cima. Sobe e desce no elevador as vezes que forem precisas para ganhar coragem, ou ritmo, ou tema para estas coisas nenhumas que enchem o dia-a-dia. Aprende o interesse dos outros, para que se interessem por ti: um pequeno nada no meio de tanta coisa nenhuma, grande, imensa, sufocante, que tanto os atrai.

Inscreve-te. Faz parte. Corre, corre…

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Inconformismos

Revolutionary Road, de Sam Mendes


Estreou há dias o último filme de Sam Mendes, o homem que já tinha realizado Beleza Americana, esse filme espectacular sobre o modo de vida da classe média dos States. Tema recorrente este, já que é também sobre a classe média americana e sobre a vidinha caseira, pacata e ordeira de um casal dos anos 50 que Sam Mendes nos conduz o olhar.

Subúrbios de Connecticut, 1955. A vida do casal Wheeler não corre sobre rodas. Vida organizada, de um casal com dois filhos e um emprego estável, não chega, no entanto, para satisfazer as aspirações desta dupla que se julga de certa forma “especial”. O mote “Paris” surge nas suas conversas como um escape, uma libertação, um ideal de liberdade e uma promessa de uma vida cheia, plena de satisfação pessoal, em contraponto com aquela pacatez e monotonia americana de subúrbio ajardinado e soalheiro, em que os dias se adivinham iguais e sem estremecimentos. Ao terem mudado para Revolutionary Road (a morada da casa que alugaram quando nasceram os filhos e onde resolveram instalar-se), não poderiam imaginar, contudo, em como este nome lhes seria premonitório. Um autêntico caminho revolucionário, que rimava com a ideia de tudo abandonarem e recomeçarem a vida em Paris, onde ela trabalharia e ele teria tempo livre para descobrir o que quereria fazer da sua vida, revolucionando por completo o sistema, o American Dream, que ditava que o homem era o cabeça de casal e, por isso, que a ele cabia sustentar a família; que ditava, também, que uma família com filhos deveria pautar o seu quotidiano por um ramerrão sossegado; que ditava, ainda, que era normal aceitar-se um emprego estável, ainda que completamente desinteressante, e que a fogosidade de outros voos ficava vedada aos casados com responsabilidades familiares.

Sonho e realidade. De que maneira é que o sonho se pode tornar realidade ou, pelo contrário, será que se trata de duas situações antagónicas e inconciliáveis... No caso dos Wheeler, a “revolução” contra o conformismo que pensavam levar a cabo não viu a luz do dia e transformou-se no maior pesadelo das suas vidas.

Adaptado do romance de Richard Yates, os diálogos exprimem, assim, um sabor literário muito interessante. Com uma realização muito bem conseguida, através de planos em que a acção decorre de forma suficientemente explícita mas sem que o óbvio nos seja servido de bandeja, a empanturrar-nos com finais de diálogos desnecessários, e de uma composição de personagens perfeita, em que todas elas têm uma função bem definida, este filme revela-se como um dos melhores dos últimos tempos. De salientar o excelente desempenho de Kate Winslet, no papel da protagonista insatisfeita e sonhadora e de um Leonardo DiCaprio maturo. A personagem do vizinho louco, interpretada por Michael Shannon, faz-nos lembrar um pouco o Coro das tragédias gregas, a voz da consciência, aquele que goza da liberdade para dizer a verdade, sem se intimidar pelo discurso das conveniências sociais.

Um filme que merece as cinco estrelas. Uma reflexão absolutamente imperdível.