domingo, 27 de julho de 2008

Um palácio para o Nobel

José Saramago - A Consistência dos Sonhos, exposição organizada pela Fundação César Manrique (Lanzarote), que teve uma primeira exibição nas Canárias em Novembro passado, termina hoje mesmo a sua mostra em Lisboa, no Palácio da Ajuda, fruto de uma parceria realizada entre esta fundação e o Instituto de Museus e Conservação, a Biblioteca Nacional e a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas.

Esta exposição revela-nos o homem e o escritor ao longo dos 85 anos da sua existência, numa viagem através de todo o tipo de registos: documentais – cartas, rascunhos, recortes de imprensa, caderninhos do tempo de escola da longínqua década de 20, fotografias de Lisboa antiga ou do Ribatejo - mas, e sobretudo, através de uma forte componente multimédia que, misturada com os suportes mais convencionais – do papel a objectos do quotidiano (de onde se destaca as peças de mobiliário do escritório de Saramago em Lanzarote) – nos traz vídeos com entrevistas ao autor, documentários diversos, um filme de animação, gravações áudio, vídeos com excertos de óperas, entre outros. Das minhas impressões da exposição – que foram muitas! – saliento uma projecção vídeo de Charles Sandison que, inspirado no livro de Saramago Todos os Nomes, projecta na parede excertos de textos e nomes de pessoas que aparecem, movimentam-se e compõem uma figura humana que pretende representar o escritor, como se todos estes nomes fossem integrar o criador da obra, numa paternidade assumida da sua criação e numa identificação com todos eles.

Entre os documentos apresentados estão também obras de arte, pertencentes à Colecção José Saramago, de autores como Rogério Ribeiro, David de Almeida, José Santa-Bárbara, Júlio Pomar ou Antoni Tápies.

Esta viagem revela-nos a intervenção cívica de Saramago e o seu pensamento crítico: um homem defensor do iberismo; um ateu preocupado com Deus e com a justiça entre os homens. Um escritor que subverteu a pontuação e que, de jeito corrido, faz poesia com as palavras.

Absolutamente imperdível, esta exposição sobre o criador de Blimunda Sete-Luas e Baltazar Sete-Sóis, que hoje fecha a porta e desliga a luz, terminando em beleza com um concerto de violoncelo executado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa. Foi ela a razão de ontem, num fantástico dia de sol, ter corrido para o Palácio Nacional da Ajuda. E não me arrependo.

José Saramago: exposição "A Consistência dos Sonhos"

sexta-feira, 25 de julho de 2008

À noite no museu...

Ontem, quinta-feira, de forma inesperada e por sugestão de T., pude fazer uma pausa na semana de trabalho, e apreciar o jazz e a bossa nova na actuação dos Fab Five, alunos do Hot Clube. Duas horas de um som melodioso, protagonizado por uma voz muito promissora e por interpretação dos músicos a condizer, no ambiente acolhedor e discreto de um pátio verde e fresco, onde muitos degustavam um jantar descontraído. A oriente da cidade, redescobrindo velhas ruas que nos conduzem à Madre de Deus e ao Museu do Azulejo, certamente um dos recantos mais interessantes do burgo. E tudo isto a propósito do recente projecto 5ªs à Noite no Museu, promovido pelo IPM que, num circuito por quatro espaços (Museu de Arqueologia, Museu do Azulejo, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves e Museu Nacional de Arte Antiga) proporciona ao público visitas até às 23h, projecção de documentários, animação, concertos (ver programação).

Quem pensa que os museus são espaços mortos, em que a única actividade possível é a contemplação, em silêncio, de umas quantas peças a cheirar a mofo, acorde! Naturalmente no circuito cultural, os museus são, cada vez mais, espaços em que a cultura é entendida nas suas múltiplas vertentes: estética, pedagógica, lúdica…

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Cohen: a Voz dos deuses

A banda sobe ao palco vestida de negro e chapéu na cabeça, qual gang de Nova Iorque ou Chicago, anos 30. Paisagem com rio ao lado, lua redonda de cheia e noite cálida, abrigam a visita deste Senhor.

Aos primeiros acordes de Dance me to the end of love, arrepia-se a pele, subjugada pela voz grave, gravíssima, que parece vir de dentro da Terra, do fundo dos Tempos. Dance me to your beauty with a burning violin... É Cohen que, apesar dos seus 73 anos, mantém aquela voz única, inconfundível, que dá corpo às letras intimistas que conhecemos há décadas. Como há bem pouco tempo alguém me dizia, há coisas que melhoram com a idade e a voz de Cohen é, sem dúvida, uma delas.

Grave, profunda como mais nenhuma sabe ser, ela é a verdadeira atracção de qualquer espectáculo protagonizado por Cohen e a sua banda, composta por músicos excelentes e um coro feminino de primeira água.

É neste espírito que cerca de 10 000 almas se renderam aos já conhecidos encantos deste repertório, ora trauteado baixinho, ora ouvido num silêncio respeitoso, agora como há 23 anos, em 1985, quando, ainda menina, o vi e ouvi em Cascais no seu primeiro concerto em Portugal.

Do artista a sensualidade e o inegável charme, sabedoria de estrela maior que distribui repetidamente elogios aos músicos e galanteios ao público; que se curva em admiração à música portuguesa e nos presenteia com um concerto de quase três horas, com um final a lembrar o gospel, em tom de agradecimento. Embalados por So long, Marianne, Suzanne e Take this Waltz, ou deixando-nos conduzir por este guru em Hallelujah...

Saio com a sensação de despedida, como se de um último encontro se tratasse. Mas fica o doce sabor do privilégio de ter assistido à actuação do último grande senhor do charme, que declama e seduz enquanto canta.

So long, Leonard Cohen...

Leonard Cohen - If it be your will

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Diálogos a quatro mãos


Ontem, ao final da tarde, na Sala do Senado do Palácio de São Bento, assisti ao concerto magnífico de Mário Laginha e Bernardo Sassetti.

A Assembleia da República tem vindo, nos últimos tempos, a promover eventos culturais, que se desdobram em exposições, peças de teatro e concertos de natureza vária, com vista à divulgação cultural nacional e integrado num programa de abertura do Parlamento ao cidadão. Desta vez, o motivo foi o encerramento dos trabalhos parlamentares, assinalado com este concerto de mestres.

Um diálogo entre dois dos mais conceituados pianistas e compositores de jazz portugueses, que connosco partilharam um repertório maioritariamente constituído por variações sobre temas de Zeca Afonso, como Vampiros, Venham mais cinco, Era um redondo vocábulo e Traz outro amigo também. Dos próprios, A menina e o piano (Laginha) e Sonho dos outros (Sassetti). A dificuldade em apontar momentos de eleição é evidente, pois todas as peças foram muito bem interpretadas, mas talvez saliente a última que, certamente por inspiração do próprio tema de Zeca, elevou os dois pianistas - a eles e a nós - numa espécie de espiral feita de imaginação, emoção e prazer.

Um final de tarde que fez o dia merecer-se...


Traz outro amigo também

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Olhares do alto do império...

Lunch atop a Skyscraper, de Charles Ebbet, 29 de Setembro de 1932. Foto publicada pelo New York Herald Tribune e tirada no 69º andar do Rockefeller Center.

Esta fotografia é a primeira de um conjunto de fotos que me chegaram num daqueles mails que aterram diariamente nas nossas caixas de correio. Não resisti a partilhá-las, por serem reais, antigas e alertarem para as inexistentes condições de segurança destes trabalhadores, o que, muitas vezes e apesar da legislação em vigor, ainda se verificam.

Algumas destas fotografias são da autoria de Charles Ebbets, nos anos 30, e reportam-se a situações do quotidiano dos trabalhadores na construção dos arranha-céus de Nova Iorque, entre 1920 e 1935. Estas fotos integram o arquivo Bettmann, fundado por Otto Bettmann em 1936, que actualmente pertence à empresa Corbis, propriedade de Bill Gates.

Ver todas as imagens

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Entrevistas no feminino: à conversa com Agry...

O Agry do Navegador Solidário tem vindo a realizar entrevistas a bloggers. Numa primeira fase, escolheu pessoas do mundo lusófono e, segundo as suas próprias palavras, comprometidos na divulgação da história, da cultura e das aspirações dos respectivos povos. Terminada essa primeira fase, decidiu-se por entrevistas no feminino. E é essa conversa, para a qual simpaticamente o Agry me convidou, que partilho aqui convosco. Bem-haja, Agry!...

sexta-feira, 11 de julho de 2008

"O meu irmão é filho único", ou diferentes mas iguais...

Dos mesmos argumentistas de A Melhor Juventude, e apesar do enquadramento histórico ser o mesmo e de utilizar uma linguagem cinematográfica a meu ver comum, este filme não segue o mesmo trilho épico do anterior, antes se detendo em pormenores quer de perfil psicológico, quer de detalhes de época muito interessantes.

É comum dizer-se acerca deste filme que se baseia na história de dois irmãos que seguem percursos diferentes, uma vez que um é comunista convicto e empenhado e o outro fascista. Não sendo mentira também não é inteiramente verdade ou, pelo menos, é uma visão muito redutora.

Manrico, o filho mais velho, lindo, sedutor, revolucionário, encarna o perfeito "Che Guevara" italiano, um líder nato que apaixona todos à sua volta. Em aparente contraponto Accio, o mais novo de três irmãos de uma família da classe baixa italiana, o protagonista desta história, é desde muito novo um ser inquieto, que questiona tudo à sua volta, irreverente e impulsivo. Desde a sua entrada forçada no seminário (solução muito em voga para quem via nisso a forma de se livrar de mais uma boca para alimentar), e onde Accio procura seguir à risca e a preceito os mandamentos da Igreja, de tal forma que acaba por sair; da sua adesão fora de época ao partido fascista, à Ideia, como refúgio numa família inventada; na defesa daquilo em que acreditava, entendido como tábua de salvação, como âncora para si próprio. De resposta pronta e punho certeiro, brigão, incompreendido pela própria família que desespera com os seus actos, Accio vai-se revelando como a personagem mais completa e de perfil psicológico mais interessante nesta trama. O rebelde, aparentemente o mau da fita, que recolhe a simpatia do espectador e que, apesar dos excessos, tem um coração grande e alma de justiceiro.

Um filme sobre 15 anos da história de Itália: os anos 60 e 70, o rescaldo ainda do pós-guerra, a vida dos pobres e o saudosismo de Mussolini para aqueles que, nada tendo, se agarram à ideia de um líder todo-poderoso e que os guie. A força do Partido Comunista e a luta operária e estudantil. As contradições de um país que se nos revela através desta família da "arraia miúda", liderada por uma mãe que nunca sorri, esgotada, e por filhos com brilho nos olhos, cheios de ideais revolucionários e bandeira da voz dos desfavorecidos. Ideais de outrora...

domingo, 6 de julho de 2008

Risos de palco...

Actores do Intervalo Grupo Teatro durante o ensaio da peça Vivó Bode!

A convite de amigos, o serão de sexta-feira foi passado entre umas boas risadas, assistindo à peça do Intervalo Grupo de Teatro, que funciona no teatro municipal Lourdes Norberto, em Linda-a-Velha. Vivó Bode!, um espectáculo de poesia satírica, divertido e irreverente, leva à cena poemas de Alexandre O'Neil, António Gedeão, António Lobo Antunes, Augusto Gil, Bocage, João de Deus, Mário Henrique-Leiria, Millor Fernandes, Natália Correia, Ruy Belo, entre outros.

Fica aqui uma breve amostra, com duas pérolas de Mário Henrique-Leiria, um poeta de quem eu muito gosto:



RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver o que acontecia

Chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

É o que acontece

às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar o que acontece.


TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa.
Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias.
Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.

terça-feira, 1 de julho de 2008

O elo quebrado...

"Não quero morrer católica!" Esta afirmação é de Julia Antón, 77 anos, espanhola. Ela é eco das aspirações de alguns católicos, por baptismo, que querem renegar, de forma oficial e reconhecida publicamente, a sua integração na comunidade dos crentes.

Esta notícia colhi-a num dos últimos números de Le Nouvel Observateur. Insólita pela novidade. Segundo o artigo do periódico, a "cidade dos apóstatas" [aqueles que renunciam a uma religião, que abjuram da fé] ganhou forma em Rivas Vaciamadrid, um município dos arredores da capital espanhola.

Da mesma forma que o baptismo é o rito de entrada na comunidade dos crentes católicos, dando lugar a um "certificado" de baptismo, estes católicos forçados reivindicam o direito de saída dessa comunidade através de outro rito semelhante, com certificado de "fim de história". Não se identificam com a Igreja Católica, a qual, juntamente com a Guardia Civil, responsabilizam pelos males nacionais. Gente que sente o fardo de um passado de alguma forma traumático e que reclama uma maior amplitude dos direitos e liberdades individuais.

Numa Espanha tida por católica mas em que se têm vindo a operar mudanças, esta pode ser mais uma acha para a fogueira, na senda das últimas transformações introduzidas por Zapatero: casamento homossexual, divórcio expresso, abolição do ensino religioso durante o horário escolar, debate sobre a liberalização do aborto, a reforma do financiamento da Igreja...

A apostasia poderá ser mais um contributo para a tão reclamada liberdade religiosa? Deixo a questão em aberto.