segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A tradição já não é o que era...

Sábado à noite. No Lourdes Norberto sobe ao palco a última homenagem deste ano, desta vez a uns senhores que fazem 33 anos de existência e que eu, confesso a minha ignorância, julgava já moribundos para as cantorias. Falo da Brigada Victor Jara, assim baptizada em honra do chileno assassinado aquando do derrube do regime de Salvador Allende, em Setembro de 1973.

De viva voz fiquei a saber que nasceram em 1975 e que, no contexto revolucionário, incluíram-se nas campanhas de alfabetização para, a partir de Coimbra e através da música, fazer chegar junto dos iletrados a luz das raízes musicais do povo - ou seja, dos próprios. Era uma outra espécie de alfabetização, paralela à das letras e das contas de somar; esta, a dos sons reconhecidamente bons, de qualidade, autênticos.

O que este grupo faz é música da melhor. Com base numa recolha etnográfica, faz uso de uma multiplicidade de instrumentos musicais que vão desde a viola, a viola braguesa, a gaita de foles, o violino, a flauta, o acordeão, os ferrinhos, entre outros. Todos os sons são bem-vindos e a Brigada Victor Jara cozinha-os magistralmente. Ou, como talvez eles próprios o diriam, "os cozinheiros não somos nós mas o povo que gerou esta música". E é precisamente aqui que é devida a reflexão. Música popular, música pimba, música pop, música para o povo, música de recolha etnográfica. Tudo coisas diferentes, como é bom de ver. O Estado Novo foi pai de um género dito popular mas que ficou para os anais da História como género maldito, o folclore. De cariz propagandístico, servia os intentos do Estado e pintava um povão de bochechas cor-de-rosa, reduzindo-o a bilhete-postal das chamadas regiões administrativas.

Em contrapartida, surge um trabalho mais sério, de recolha, como é o caso deste grupo, entre outros que também se dedicam a perpetuar a tradição oral portuguesa. Aqui as notas são bem outras, o tratamento, a harmonização das cantigas soa de maneira totalmente diferente: mais rica, mais genuína, muito melhor.

Depois, surge o pimba. Género popular, sem dúvida, mas sem o mérito que se atribui à música popular tradicional, assente numa pobreza musical muitas vezes confrangedora mas que, por isso mesmo, entra muito facilmente no ouvido.

Há, portanto, várias versões de música popular. Todas elas saídas do povo e para o povo. Todas elas por ele apreciadas, se bem que em momentos e contextos diferentes. A primeira, fruto de uma ruralidade fechada em si mesma, sem grandes influências do exterior a não ser a que lhe advinha da poeira dos séculos, já que em muitos casos se nascia e morria sem visitar a aldeia vizinha; cantava a sua realidade através de instrumentos tradicionais, proporcionando uma harmonia e beleza próprias das coisas simples. A segunda, manipulada, acatitada, voz do pobrete mas alegrete, já sem o charme da primeira. Agora, o pimba, versão industrializada, consumista, que ora canta a saga do emigrante de Agosto, ora se detém nas mundanidades suburbanas do shopping.

Porém, todas elas populares, se entendermos como tal um género que nasce do povo e a ele agrada. Todas elas, a meu ver, explicadas pelas conjunturas que lhe correspondem e pela dinâmica da História. Do mundo rural, fechado, traduzido aqui em regiões com identidade própria, à globalização, à linguagem comum.

De entre as três nem pestanejo quanto à escolha. É evidente que é da primeira, da música popular tradicional, que me chegam os sons que me encantam, pela variedade e riqueza que permitem. Mas não posso deixar de me lembrar de uma frase que vi há dias pespegada na parede de um café e que, tão a propósito, falava assim: "o povo gosta de luxo; quem não gosta é intelectual". À música, e não só, assenta-lhe como uma luva...

15 comentários:

Luis Eme disse...

viva a tradição, viva a música popular, Paula.

bjs

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
também desconhecia que a banda estive assim, renovada!

faz tanto lembrar as sonoridades da Galiza e do nosso Norte raiano com ela! de que gosto bastante...

boa semana
um grande sorriso :

mariam

ah! o concerto da Maalda Arnault, gostei muito.
Não consegui ainda ir a nenhum evento dessa cultural semana... vou tentar ir no Sábado! parece-me bem interessante.

mariam [Maria Martins] disse...

errata: Mafalda :)

Paula Crespo disse...

Luis,
Depende das tradições, mas neste caso, sim!
Bjs

Paula Crespo disse...

Mariam,
Oops, a semana cultural já acabou, no domingo passado... mas para o ano há mais :)
Bjs

Anónimo disse...

"o povo gosta de luxo; quem não gosta é intelectual" ... :)

Mais um bom texto. E lá voltei uns anitos atrás...

Bjo

Paula Crespo disse...

Lb,
Voltou uns anitos atrás? Que bom... Será que vou ter de registar a patente como elixir da eterna juventude??? ;);)
Bjs

paulofski disse...

É a música popular tradicional, claro.

Os Deolinda são outra das raras bandas de qualidade a nascer para de musica tradicional portuguesa. Muito bons.

Alexandre disse...

O português (médio, entenda-se) deve ser o único no mundo que tem vergonha das suas próprias raízes, onde se inclui a música tradicional, o que não se passa com a maioria dos povos que cantam as suas tradições nas ruas e nos bares, como os espanhóis ou os irlandeses.

Já assisti à recolha etnográfica de canções populares (pelo António Sardinha, nomeadamente) e posso dizer que foi das coisas que mais me emocionou até hoje - é a diferença entre o perder o que é genuíno e o conseguir conservar alguma coisa - é uma pena que estas coisas sejam feitas por carolice sem apoios governamentais!

Excelente post, Paula! Viva a música portuguesa!!!

Paula Crespo disse...

Paulofski,
De vez em quando, há uma banda que emerge do resto e se destingue. É o caso dos Deolinda. Tens razão, é excelente: a Ana Bacalhau tem uma grande voz e o projecto da banda é muitíssimo bom. A reter.

Paula Crespo disse...

Alexandre,
Os espanhóis e os irlandeses são dois bons exemplos do que disse. O orgulho que eles têm da sua identidade cultural é uma inveja: podíamos aprender a partilhar desse orgulho, só nos faria bem
Uma boa semana!

mariam [Maria Martins] disse...

upss
upsss
upssss
e não sei mais quantos upssss :)
ainda bem que aqui vim hoje...grande confusão de datas eu fiz!!! já havia combinado ir com a minha filhota... e que parva ficava no próximo Sábado! LOLOL

deixo-lhe uns baguinhos de romã!

bom resto de semana
e um sorriso :)


ah! não tenho ido ao "Olhares"... sorry... incluso tenho n coments para autorizar... e "amigos" para ver...
o tempo... a falta dele...

Oliver Pickwick disse...

Admiro a sua tolerância.
A frase em questão é do carnavalesco brasileiro Joãozinho Trinta, um dos projetistas mais notáveis de temas para escolas de samba. Se não se importa, faço uma ligeira correção: "o povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual".
De certo modo, acho que ele está certo.
Um beijo!

Paula Crespo disse...

Mariam,
Doces baguinhos estes! Já os tinha visto...
Bjs

Paula Crespo disse...

Oliver,
desconhecia o autor da frase, mas achei-a espantosa. Vocês têm uma capacidade inigualável de verbalizar coisas que mais ninguém consegue, e com uma graça muito própria.
Mas devo dizer que, em grande parte mesmo, subscrevo-lhe a ideia.
Beijos!