sábado, 29 de novembro de 2008

Silêncios...

Como diria ela, “não é mandatório”. Pois não. Nem obrigatório, sequer, que isto na língua materna soa mais reduzido, menos rigoroso, com menos… afinco?!, indagaria ele, se coragem tivesse, com um sorriso irónico a bailar-lhe nos olhos. Um sorriso daqueles que traem qualquer tentativa desajeitada de parecer interessado nas suas palavras, de aderir às ideias que lhe saltam da boca num stress de hora de ponta.

Ajeita o cabelo, cruza e descruza as pernas que terminam num modelo fashion e não pára. Não pára de verbalizar opiniões sobre tudo e coisa alguma, com a segurança de quem acabou de travar conhecimento com algumas delas e a quem já trata por “tu”, numa descontracção de velhas amigas. Ele sorri para dentro e continua a ouvi-la, escutando-a intermitentemente, vagueando de mansinho por outros destinos que a memória lhe vai servindo em pequenas doses.

“Não achas?”, ouviu-a. Ao longe, num eco, com arestas nas palavras. “Hum? Sim… acho…”. Não achava. Estava demasiado morno para achar o que quer que fosse, num torpor distante do qual não lhe apetecia sair tão depressa e enfrentar o que ela achava. Voltou-se, serviu-se num copo alto e perdeu o olhar no rio que o chamava ao longe, com aquela luz de fim de tarde por quem se apaixonara.

“Qualquer dia vou navegar e entro nela”, pensou. Nessa luz com nome que guarda só para si, por não interessar a quem acha muitas coisas que lhe são distantes. Qualquer dia…

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Divagações da memória...

Por um estranho labor dos fusíveis do pensamento, como que num flashe, veio-me à memória uma peça que vi no Teatro Aberto, em 2006, Os sete dias de Simão Labrosse. Uma peça que adorei, pelas interpretações e pelo texto e que me marcou definitivamente, quer pelos bons motivos já invocados, quer pelos maus, como uma errada reacção de algum do público presente, que parecia não compreender a profundidade dos diálogos que lhes entrava pelos ouvidos e que vagueava com muita dificuldade até ao cérebro. E como os actores se superavam em impossíveis, ao não saltar para a triste realidade desta plateia que os observava no vazio das gargalhadas estridentes e ocas, e a abanar, numa tentativa, por certo inglória, de a acordar do torpor da suposta comédia que teimava em assistir...

Esta peça falava-nos de um homem, Simão Labrosse, que, numa luta para sobreviver e para preencher o vazio da sua existência, inventava um novo emprego a cada dia da semana, dias esses que, metaforicamente, simbolizavam a sua vida. Assim, Labrosse candidatava-se às tarefas mais abstractas e inverosímeis, como: duplo emocional, acabador de frases, adulador do ego, aliviador de consciência e apaixonado à distância. Uma espécie de dama de companhia da solidão de cada um, numa busca desesperada para ser feliz e ser útil aos outros, assim entendi eu.

Devo confessar que de vez em quando os meus fusíveis faíscam neste sentido, lembrando imagens ou curtos diálogos da peça. Marcantes, sem dúvida, pela beleza da alegoria. Como, por exemplo, uma estranha personagem que a minha memória já dificilmente encaixa na narrativa, mas que deixou de herança o facto de, pouco menos que muda e assustada, nunca dizer nada pela positiva, iniciando os seus parcos diálogos com um Não ou um Nada ou um Nunca.

Apagado o clarão da memória, desligado o interruptor, tudo volta à normalidade do presente. Foram-se embora as imagens de Labrosse e da sua luta para ser feliz. Até ao próximo levantar do véu...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

With a little help from my friends...

Em jeito de desabafo. Ou de recompensa. Ou, ainda, e muito mais isto, em jeito de agradecimento.

Hoje recebi várias manifestações de amizade, de ternura mesmo, que fizeram o dia merecer-se e que me puseram sorrisos no rosto. Sorrisos plasmados, daqueles que doiem um bocadinho quando se desfazem, pois estiveram cá o tempo suficiente para que tal acontecesse.

Por isto, veio-me à memória a velhinha canção dos Beatles que aqui vos deixo, com a letra a passar em rodapé, assim em jeito de karaoke...

With a little help from my friends. Always...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sorrisos amarelos...

(imagem da Internet)


Aterrou no meu mail e fala por si. Seria cómico se não fosse trágico.

Texto (verídico) retirado de uma prova livre de Língua Portuguesa, realizada por um aluno do 9º ano, numa Escola Secundária das Caldas da Rainha

REDAXÃO
'O PIPOL E A ESCOLA'
Eu axo q os alunos n devem d xumbar qd n vam á escola. Pq o aluno tb tem Direitos e se n vai á escola latrá os seus motivos pq isto tb é perciso ver q á razões qd um aluno não vai á escola.

Primeiros a peçoa n se sente motivada Pq axa q a escola e a iducação estam uma beca sobre alurizadas.


Valáver, o q é q intereça a um bacano se o quelima de trásosmontes é munto Montanhoso? Ou se a ecuação é exdruxula ou alcalina? Ou cuantas estrofes tem Um cuadrado? Ou se um angulo é paleolitico ou espongiforme? Hã?


E ópois os setores ainda xutam preguntas parvas tipo cuantos cantos tem 'os Lesiades''s, q é um livro xato e q n foi escrevido c/ palavras normais mas q no Aspequeto é como outro qq e só pode ter 4 cantos comós outros, daaaah.


Ás veses o pipol ainda tenta tar cos abanos em on, mas os bitaites dos profes até dam gomitos e a Malta re-sentesse, outro dia um arrotou q os jovens n tem Abitos de leitura e q a Malta n sabemos ler nem escrever e a sorte do gimbras Foi q ele h-xoce bué da rapido e só o 'garra de lin-chao' é q conceguiu Assertar lhe com um sapato. Atão agora aviamos de ler tudo qt é livro desde o Camóes até á idade média e por aí fora, qués ver???


O pipol tem é q aprender cenas q intressam como na minha escola q á um curço De otelaria e a Malta aprendemos a faser lã pereias e ovos mois e piças de Xicolate q são assim tipo as pecialidades da rejião e ópois pudemos ganhar um Gravetame do camandro. Ah poizé. Tarei a inzajerar?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quando o agora chegar...

(imagem da Internet)


“O que queres ser quando fores grande?”, perguntavam-lhe.

O que quero eu ser quando… Não sabia. Ideias soltas aproximavam-se do seu pensamento, de mansinho, pé-ante-pé, rondavam para depois saírem, sem fazer barulho. Iam e vinham mas não se demoravam, como se sentissem frio e, desconfortáveis, voltassem as costas para procurarem outros agasalhos.

O que quero eu ser quando… Tinha de saber mas não sabia. Sabia apenas que não queria ser isto, nem aquilo. Que bocejava só de pensar em. Sabia que, se fosse isso, talvez gostasse…

Passou tempo e mais tempo. E tempo ainda. Foi o que pôde e cedo. Fez isto e aquilo e mais do mesmo. Esforçou-se. Passou as etapas previstas, acumulou tarefas e desempenhos. Foi sendo, naturalmente, em lume brando.

Tudo o resto que queria ser, descoberto devagar, foi-o sendo divagando, sonhado, como que um prazer imaginado e sussurrado, para dentro. Um corpo que ganha forma e cresce, mesmo que depois desapareça como um cigarro saboreado sem pressa.

O que queres ser quando fores grande? O que queres ser quando o agora chegar, pensou.
Talvez isto.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Alegoria da vírgula e do ponto

(imagem da Internet)

Corriam os dedos no teclado, soltos, apressados, estouvados até. Corriam velozes, que o tempo passa depressa e a manhã já soa, pianinho, num sussurro, até que se lhe adivinha a voz ganhando corpo, escurecendo, crescendo para o dia, firme, madura.
Corriam os dedos, semeando letrinhas bambas, amedrontadas, daquelas que ninguém dá nada por elas, nadinha mesmo. Trémulas, agarram-se umas às outras até que, ganhando coragem, seguem de peito feito e nariz empinado, num corpo de palavras que contam histórias.


A vírgula entrou por ali dentro, acompanhada de manas e primas, todas iguais, todas sem jeito, borbulhentas e rechonchudas. Instalaram-se, sentaram-se bem perto umas das outras, numa algazarra de galinheiro, ora cochichando, ora elevando a voz, estridente e desarticulada. Risinhos rosa choque ecoavam por todo o texto, nervosos, num sem jeito imaturo de quem não sabe bem ao que veio.
– “Porque viemos, prima?”, indaga a mais nova, de olhos abertos, brancos, sem fito.
- “Ora, Tininha”, responde a outra, “viemos ao costume: semear a confusão neste reino de letras. É a nossa voz, as nossas razões que queremos fazer valer. Estamos fartas que nos tomem por tolas, por inúteis”.
E continuou chilreando em redor, atirando ao ar pequenas razões, “por isto, por aquilo”, na certeza de reinar sem medo num mundo de letras trémulas.


“Puro engano de quem não sabe onde pisa”, deu por si a pensar o ponto, observando-as do fundo da sala. Velho matreiro, tarimbeiro de muitas lides no teclado e no papel, onde outrora a tinta era sua companheira. “Mudam-se os tempos, é certo, mas haja dignidade!”, decide-se ele por esta máxima, confiante no seu papel de regulador de frases perdidas. “Se pensam que me reformam estão enganadas”, continua.
E sai, altivo, compassado, ditando as regras e impondo-se naquela desordem de letras sem rumo. Batendo com a porta e pondo os pontos nos iis.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Blindness" ou a selva humana

A cegueira branca. Uma cegueira que se opõe à física, tradicionalmente vestida de negro. Esta, cegueira de leite, cegueira da consciência. Uma sociedade de cegos que, por isso mesmo, se desumaniza e revela o negro mais negro do ser humano.

Ensaio sobre a cegueira (Blindness) estreia hoje. Filme de abertura do Festival de Cannes deste ano, baseado na obra homónima de José Saramago. Fernando Meirelles transpôs para cinema a sua perspectiva desta obra, interpretando-a de forma feliz, recorrendo à utilização de uma luz branca e leitosa e de planos desfocados, pretendendo assim, nas próprias palavras do realizador, transportar o espectador para dentro da tela, para o interior desta realidade de um mundo de cegos que constitui esta metáfora social.

Saramago não deixa pistas que nos permitam identificar a acção no tempo e no espaço. A história decorre numa grande cidade, uma qualquer cidade sem nome visível, e Meirelles recheou-a de personagens dos quatro cantos do mundo, numa composição de um tecido social suficientemente abrangente para respeitar a alegoria ditada pelo criador da obra.

O tema sintetiza a preocupação do autor. «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.», é o alerta, tantas vezes gritado por Saramago, dito também em Estocolmo aquando da atribuição do Nobel. É o seu mote querido, fio condutor ao longo da sua vasta obra.

Julianne Moore corporiza o guia, a bengala, o apoio, a única capaz de ver. Por isso mesmo, a luz ao fundo do túnel, a salvação. No final, uma réstia de esperança, o renascer para um mundo novo, o alívio do despertar de um pesadelo. Citando Saramago, aquando do lançamento do livro: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso."

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A minha alegre casinha

Faz hoje um ano que aluguei esta casa. A mobília foi trazida aos poucos, e já cá moram 129 peças, que decoram este espaço.

Nunca me sinto só, pois tenho recebido muitas visitas. Umas demoram-se mais, passam temporadas prolongadas. Outras entram e saem, numa visita de médico, mas todas têm sido sempre muito simpáticas comigo. Até hoje, não tive nunca um hóspede desagradável ou mal-humorado. Tenho tido muita sorte! Há também quem só espreite e não chegue a entrar: talvez porque não goste da decoração, a ache antiquada. Ou então é por timidez. A essas pessoas apetece-me dizer: "Entrem! Estejam à vontade e venham dar dois dedos de conversa..."

Gosto de morar nesta zona - estou mesmo a pensar fazer obras e ampliar a casa. Acho que vou precisar de mais espaço, para o ocupar com mais mobília ainda, novas peças, outro conforto. Preciso de procurar uns encostos que sejam a minha cara, assim uma espécie de mim... Também gosto muito de quadros, por isso por vezes penduro umas fotografias nas paredes para alegrar este meu espaço. Manias!

Como adoro cinema, reservei uma parte desta casa só para ver as fitas de que gosto. Bom, às vezes engano-me e sai-me cada uma! Mas o bom mesmo é poder comentar cada uma delas com estes meus amigos e falar sobre aquilo que vimos. Cada um de nós tem uma perspectiva diferente, outro olhar, e assim a conversa fica mais animada.

Já tive uma aparelhagem mas avariou-se, coitada! Ficou tão esquisita que nem conseguia atinar com a música que se lhe pedia. Deitei-a para o lixo e comprei outra, mais pequenina. Mas serve, porque quando gosto de uma música fico para ali a ouvi-la durante muito tempo até me cansar e passar para outra. Tenho também uma estante com alguns livros, mas tenho de lhe limpar o pó... ou talvez substituí-la por outra, mais moderna, que de vez em quando dá gosto fazer umas mudanças.

Bem, está alguém a tocar à campainha. Vou abrir... até logo!

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A rua dentro de quatro paredes

Estão dentro da sala de aula mas, na realidade, não estão. Os seus pensamentos vagueiam, a sua atenção é escassa e perde-se por outros atalhos que não os que conduzem ao professor e à matéria dada. Qualquer pormenor capta os seus olhares, produz risos, provoca conversas que muitas vezes, ou quase sempre, descambam para a insolência ou mesmo a agressão. Reagem assim porque lhes é muito difícil encontrar sentido nas palavras que ali ouvem, soando-lhes estranhas, antiquadas, inúteis para as suas necessidades e absolutamente estrangeiras para o seu mundo, mundo que é feito maioritariamente de rua, de onde conhecem as leis porque se orientam.

Os seus pais vieram dos quatro cantos do mundo, de todas as etnias que a França perfilhou dos longínquos territórios de outrora, e dos de hoje, de uma França perdida nos territórios ultramarinos. Vivem uma certa perturbação identitária, sem saberem bem para que lado pender, dividindo-se entre uma identidade europeia, branca, e as suas raízes, negras, mestiças ou outras, bem vivas tanto no rosto como na cultura doméstica. Mas também os há franceses de há muitas gerações, sendo que em comum carregam consigo o peso da bolsa vazia e das dificuldades de toda a ordem que os pais lhes deixam de herança.

Tomemos, então, um grupo de jovens professores, empenhados, esforçados em captar essa atenção dispersa. Tarefa difícil mas necessária, porque transmitir conhecimentos e definir regras são eixos fundamentais para viver em sociedade. Mas qual sociedade? Para que querem estes adolescentes gastar o seu precioso tempo, normalmente passado em pouco mais do que vadiar pela rua, divertir-se ou medir forças nos gangs, namoriscar e passar o tempo no shopping, acertando o olhar na montra da bugiganga barata e das últimas americanices em versão t’shirt? Sim, para que precisam eles de saber como conjugar o presente do conjuntivo, se o infinitivo lhes dá e sobra para o gasto?

Trata-se pois de dois mundos diferentes, antagónicos até, separados por tudo e mais alguma coisa, não só o salário ao fim do mês ou a falta dele e pelas suas consequências, mas por muito mais do que isso. Os tempos mudaram e deram origem a novas realidades sociais. Antigamente, o ensino não era para todos e muitos dos que não beneficiavam dele passaram pelo menos aos filhos a mensagem da importância de a ele ter acesso, para ascensão social, para alcançar melhores condições de vida. Era valorizado, portanto. Hoje talvez o seja menos. Talvez se pense que a vida tem outros pressupostos que não passam necessariamente pela escola; talvez haja quem pense que há outras formas de angariar dinheiro e que este tudo paga e tudo compra. Talvez hajam outros ídolos a venerar, que já não passam por ter mais conhecimento ou mais cultura. Ou será porque o dia-a-dia dos pais – e designadamente das mães – está de tal forma sobrecarregado que não lhes sobra tempo nem coragem para dar mais atenção aos filhos. Ou talvez porque os próprios pais não podem dar aquilo que não têm.

São estas questões que estão subjacentes neste filme, com o rosto de documentário. A Turma (Entre les Murs), de Laurent Cantet, é um filme sobre educação. E, por isso mesmo, é um filme muito abrangente, sobre a sociedade. Filmado numa escola pública presumo que dos subúrbios de Paris, poderia tê-lo sido em Lisboa ou em qualquer outro grande centro urbano, pois os problemas são transversais e cada vez menos conhecem fronteiras. E não se circunscrevem a questões raciais, antes radicam na pobreza e nas más condições socioeconómicas.

Não sei qual é a solução para chamar a atenção dos alunos, nem para os aproximar da escola. Mas para aqueles que advogam um maior facilitismo na abordagem escolar, ou um trazer para dentro das quatro paredes da sala de aula a rua, numa tentativa de aproximar linguagens e códigos, lembro só que não é nivelando por baixo que se obterão melhores resultados. Acho eu, que não sou nem professora, nem pedagoga... Apenas interessada.