Passou a agulha pelo pano fazendo correr a linha vermelha, rematou e cortou. Pronto, mais um, pensou. Alisou o pequeno pano transformado em lenço, dobrou-o, voltou a dobrar. Pousou-o no cesto de verga que permanecia a seus pés, junto dos outros cinco que já tinha bordado e dobrado e guardou no cesto. Meia-dúzia certinha, como a Maria Júlia me pediu, contou ela para si.
Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…
Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…
A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.
Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.
Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…
Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…
A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.
Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.
30 comentários:
"E viver mete muita água .." prudente o que não se deixa afundar Paula .. porque mete realmente e não adianta fazer de conta ;)
Gostei demais deste .. e peço-te que continues .. se quiseres *
Beijinho e bom fim-de-semana
Once,
Por isso é que convém saber nadar... ;)
Obrigada pelo simpático comentário :)
Bjs e bom fim-de-semana!
cara Paula
bonito, uma ternura...
beijinho
eu diria, lindos paninhos húmidos de paixão...
bjs Paula
Este blog é um prémio ao leitor..."li-o, busquei-o, cusquei-o"...e lembrei-me de Marcel Proust...Não revisitei passados, mas fiz um percurso iniciático pela descoberta das cores do tempo perdido...Parabéns!
Paula, este texto é mesmo muito bonito.
Beijo para ti :-)
Entrei no seu blog por acidente...via Infinito_Pessoal... e encontrei aqui uma espécie de mundo pessoal e infinito...Não é trocadilho...é vibrar com uma escrita simples, doce, ternurenta...contos rápidos plenos de actualidade...O passo incerto foi entrar aqui, o passo acertado foi "linká-la" ao meu blog...apaixonado pela escrita, mais apaixonado fiquei por esta escrita apaixonada...sem paninhos quentes...
Parabéns!
Suave, ternurento, simbólico...
Obrigado!
Beijinho
Inusitado, inesperado, profundo e original.
Lindo e ternurento.
Apesar das cores do bordado, triste.
Adorei, Paula.
Beijinhos e bom fim-de-semana
Passei por acaso e demorei-me um bom bocado...
Está-se bem por aqui!
Os lenços dos namorados são lindissimos, repletos de história e simbolismo e você retratou isso lindamente no seu texto.
Parabéns.
Hei-de cá voltar!
Flip,
Agradecida... :)
Bjs
Luis Eme,
:) sem dúvida...
Bjs
Bento,
Que dizer das suas palavras?... Um grande bem-haja pelos comentários tão simpáticos que aqui deixou.
Volte sempre.
Bjs
Vekiki,
Outro para ti também! :)
Outono,
Suave sim, como o tempo da personagem. Simbólico também, tentou beber ao conhecimento de tempos recuados, vividos por outros.
Obrigada! :)
Bjs
Blue,
Ele é isso tudo que dizes?! Ena! ;)
Um grande bem-haja...
Bjs
Mena,
Obrigada pela sua visita. Venha sempre...
Bjs
LB,
Já nem vale a pena dizer que gosto da subtileza...
Bjo
Este post é de uma exuberante ternura. Bem apropriado á época...
Carlos,
O Natal pode revelar-se de múltiplas maneiras, não só através do presépio ou das renas... :)
"... e pur quem morrerá o teu?" perguntou-me Alzira com os seus olhos cravados nos meus. Aguentei o mais que pude a pressão, mas aquela mulher para tirar nabos da púcara era imbatível.
"O meu coração finou-se por ti
e de tanto bater a bota bateu.
Desde aquela vez que a bordar te vi
passados três dias o parvo morreu."
Respondi-lhe em rima, pois escusava de estar com mais explicações e enquanto ela ficava a pensar no "assunto" já eu me tinha posto a milhas.
Um texto muito giro a fazer par com a foto. Parabéns.
E com palavas e pontos que só podem ser escritos e dados por uma fina e refinada sensibilidade, borda a Paula as memórias doces e afectivas da bordadeira de Braga. Um texto belíssimo para ser lido devagarinho, delicadamente, à luz da comoção.
Bjs
Legivel,
Não querem lá ver o parvo, que se finou?! ;)
E respondeu-lhe muito bem e comentou aqui ainda melhor! :)
Lindo!
Graça,
Com comoção leio eu os seus comentários simpáticos! :)
Bjs
Eu "tumbém"andei por essa bela região a sentir esses perfumes de tradição, essas cores mágicas e textos com sentimento.
Beijinhos
Belíssimo texto. Os meus parabéns
"Tumbém" por lá andaste?! Se calhar até é o mesmo lencinho... ;)
Bjs
CNS,
Obrigada pelo seu comentário. Volte sempre.
Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes.
O factor tempo que ultrapassa as pessoas e as deixa a chorar,sobretudo quando fica a noção de que se podia ter aproveitado e disfrutado, mas no fim perdeu-se.
Muito bonito, muito bem escrito, enfim o costume, pena ser tão triste e ser relembrado 3 anos depois. Bom momento para fechar um ciclo. Beijos e parabéns.
Centralina,
Obrigada pelo comentário e pelo aplauso :)
Foi agora publicado de novo, por analogia com o dia do enamoramento, como lhe chamei, e ocorreu-me publicá-lo. A história foi inspirada pela imagem e ainda bem se a consegui compor...bem! :))
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