quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Como um soco no estômago...


Era uma vez um operário da construção civil e a sua mulher. Ele desempregado, ela a dias. Era uma vez a irmã deste, enfermeira dedicada e o pai, dos dois, que carregava a cruz de um trauma do Ultramar, numa mente deformada por uma visão distorcida e parada no tempo. Era uma vez um rapaz Nuno, doente terminal, que agonizava numa cama de hospital, e a sua mãe, desesperada e vazia, principalmente vazia, que suspirava pelo fim daquela dor. Era uma vez um punhado de gente pobre, suburbana, infeliz. Era uma vez uma realidade fria e pardacenta.

Este filme que estreia amanhã, Entre os Dedos, é a última cria de Tiago Guedes e Frederico Serra, com argumento de Rodrigo Guedes de Carvalho. Rodado a preto e branco, já que é a cor da dor que retrata, com uma excelente fotografia e uma performance de Filipe Duarte, Isabel Abreu, Gonçalo Waddington e outros, a condizer, é um magnífico exemplo de um filme neo-realista português, brutal na sua crueza. No tempo da ditadura e da sua filha censura, o neo-realismo estava obviamente ausente dos ecrãs, por encarnar o despertar das consciências que se queriam adormecidas, à luz da atmosfera que se respirava. Agora, e ainda, tantos anos passados sobre os gritos de alerta deste género, ele sobrevive e ganha expressão.


Se riqueza gera riqueza, pobreza gera pobreza. E as injustiças devem ser denunciadas. Contudo, há uma espécie de prazer mórbido em filmar o submundo, bem patente no cinema português. A temática predilecta da maioria dos filmes nacionais centra-se em actividades que, estou convencida, a maioria dos consumidores de cinema apenas conhece no plano teórico. Não é o caso de Entre os Dedos, já que aqui a pobreza é mais comum, é de uma classe trabalhadora desafortunada, ou da doença, ou de outros males. Mas refiro-me ao cinema nacional em geral. Não que estes temas não devam ser tratados, nada disso. Apenas questiono se devam constituir o exclusivo, como se toda a sociedade portuguesa, todo o país se reflectisse nessa imagem de criminalidade, de submundo. Este olhar escuro, tão do agrado dos realizadores, tão deprimido e tão deprimente, do estilo de feios, porcos e maus, já cansa. Como se o bom cinema, o que é considerado arte, tenha que ser exclusivamente negro, obscuro, angustiado e como se só por esse diapasão se afinasse a alternativa ao cinema comercial.


Se eu fosse uma marciana verde, e não soubesse rigorosamente nada sobre este país, ficaria com a firme noção de que por cá, as mulheres ou tinham todas bigode e lenço preto, ou eram prostitutas, e os homens pertenceriam todos ou a quadrilhas organizadas, ou eram agentes corruptos, nos drogávamos em massa e outras “traquinices” que nem me apetece explorar agora.

Ainda a propósito, recordo uma recente entrevista de João Canijo, realizador de cinema, à rádio Radar, em que ele defendia a tese do miserabilismo. Este rótulo já cansa. Cansa pela falta de vontade de mudar as coisas, pela má língua atávica; cansa, porque, para João Canijo, Portugal se resume a esse quadro de tons negros, pela visão miserabilista e monocórdica. Cansa, ainda, pela arrogância intelectual com que muitas vezes esse discurso é servido.

Apesar de todas as carências que, efectivamente, existem, muita coisa se fez e muito caminho se tem construído.

Outro mundo há para além do underground. Talvez um mundo demasiado normal para a câmara de filmar, de gente comum, com preocupações comuns. E, claro, a miséria é muito fotogénica...

16 comentários:

Flip disse...

Cara Paula,
não posso deixa de concordar consigo. Abordou bem a quetão e a conclusão é mais do que imperativa.È um tema gasto, não traz nada de novo, limita-se a explorar uma visão quase catastrófica deste povo. Daí, provavelmente, a nossa 7ª arte não ter grande projecção, cá e lá fora.
Não vejo tais filmes pois procuro ser uma pessoa positiva e optimista.Porque não fazer um belo filme cheio de cor e boa musica (?), os nossos surfistas são bons e o enredo arranja-se :)
Viva a alegria, caramba!!!
:)

Luis Eme disse...

o filme deve ser um "soco" mesmo, Paula.

em relação ao que falas do cinema português, tens alguma razão. mas o discurso miserabilista existe porque a nossa politica do audiovisual é mais que miserabilista... tantos projectos de qualidade, com vida e cor, que ficam na gaveta...

como se costuma dizer, sem dinheiro, não há "palhaço"...

bjs

Paula Crespo disse...

Flip,
Pois, viva a alegria... Tudo bem. Mas eu não estou contra este tipo de filmes; apenas contesto que este tipo de cinema seja a única alternativa ao "estilo telenovela". Penso que esta não é a única forma de fazer cinema sério, de qualidade. É só isso.

Paula Crespo disse...

Luis Eme,
Não tenho assim tanta certeza. Acho mesmo que a escolha dos temas é genuína, ou seja, não depende de haver ou não dinheiro. Disso dependerá a forma de realizar o filme, os meios, etc. Penso que se trata mais de uma opção estética, de critério, de modo como se encaram as coisas. Acho que se está ainda muito preso à ideia de que qualidade e filme de autor tem de ser assim, porque a realidade é negra, etc., etc. É mais um espartilho intelectual, acho eu.
Bjs

CPrice disse...

mas a miséria alheia é apelativa pela própria exploração a que se oferece Cara Paula .. e todos nós sabemos quanto gostam alguns (demasiados? .. talvez) de ver exposto o alheio nos seus contornos mais negros.

O seu texto? brilhante *
Beijinho

Ka disse...

Paula,

O grande problema é que ao contrário do que a maior parte julga nos de facto somos um povo deprimido. Sabes quando me apercebi verdadeirament disso? quando viva fora e era questionada acerca disso...fui-me então apercebendo que nos falta um bocado de amor-póprio para falar do que Portugal tem de bom:

Beijinhos

ps - os teus textos estão cada vez melhores :)

Anónimo disse...

O teu texto é magnífico.
Quanto ao filme, despertaste-me a curiosidade!

Um beijo

Jorge

pront'habitar disse...

Concordo na generalidade no que aqui nos deixaste. Muito particularmente sobre João Canijo.

Sobre este filme, não sei se verei pois por motivos vário e, com pena minha, ando bastante afastado das salas de cinema.

Gostei muito de ler-te.

Paula Crespo disse...

Once,
Agradeço o elogio ao texto :)
Como eu costumo dizer, é um pau de dois bicos. Se, por um lado, a denúncia de determinadas situações é necessária, por outro ela alimenta muita gente. Não há bela sem senão... Mas continuo a achar que temos de evoluir para outra estética, o que não impede de se continuar a fazer filmes destes, que são úteis na mensagem que transmitem. E este até é bom. Só que há mais mundo para alem disto.
Bjs

Paula Crespo disse...

Ka,
Pois falta, é um problema atávico...
Obrigada... :):)
Bjs

Paula Crespo disse...

Jorge,
Fico contente pr teres gostado! :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Pront'habitar,
De facto, fiquei um bocado incomodada com aquela entrevista dele. Achei muito redutora!
Ainda bem que gostou do texto! :):)

pb disse...

Concordo contigo, de facto ainda não ganhámos coragem para abandonar o estigma da miséria, estigma esse que começa no fado e que mais modernamente se reflecte no cinema e é como dizes, a miséria é muito fotogénica....um beijo e bom fim de semana

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
quanta verdade no que escreveu...
doi, quando ouço portugueses falarem "lá fora isto... lá fora aquilo", e "fui de férias para ... e para... lá assim, lá assado...) depois, questionados se conhecem a serra e o miradouro do Moradal ou os cerejais de Alcongosta, a vista soberba da Senhora das Neves em plena Serra de Bornes, o cálido entardecer frente a San Lucar, em Aloutim...ou um passeio "entre-os-rios"... isto só falando d'algumas paisagens...e nem falei das praias... respondem quase sempre... "onde? onde é isso?? não não conheço"!...e da cultura, pior ainda...

sorry o alongamento... mas isto dá-me nervos! rsrs

sorrisos :)

mariam

mariam [Maria Martins] disse...

errata: "Alcoutim" :)

mariam [Maria Martins] disse...

o filme: a ver. :)