quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência…



Imagem tirada daqui

Chico esperava pacientemente à porta do colégio. Já passava das cinco da tarde, a chuva caía teimosa e mole há horas e começava a fazer frio. Mirou o relógio que vislumbrava da entrada da escola, a porta abria e fechava sempre que saía um miúdo e era colhido com um beijo na bochecha, um afago, uma festa na cabeça. A porta de um carro fechava-se invariavelmente atrás dessa imagem, repetida tantas vezes quantos os colegas que abandonavam o local onde passavam os dias.

O som e as imagens foram sendo cada vez mais raros, mais espaçados. Esgueirou os olhos uma vez mais pela porta que agora tinha ficado entreaberta e colou-os ao relógio. Tinha passado uma hora a mais do que a devida e nenhum sinal da mãe. Chegou, por fim, com a irmã pela mão, que entupia de chocolates.

- Chico, anda, que estás tu a fazer aí parado?! Mexe-te! A Teresinha tem de ir já para o banho.

E lá seguiu Chico, quatro passos atrás das duas. Chegados a casa, o serão desfilou igual ao da véspera, com a mãe a praguejar contra a má sorte e contra a vida – que triste era! -, os mimos e sorrisos engolidos pela Teresinha, todos para a Teresinha, e Chico, quatro passos atrás, enfiando-se no sofá, escondido atrás dos quadradinhos das páginas dos bonecos, fingia não dar por nada e desejava crescer depressa.

E o tempo fez-lhe a vontade. Chegou a puberdade, os primeiros olhares trocados timidamente com as raparigas do liceu. Os regressos a casa, onde a mãe continuava a barafustar contra a triste sorte, o pai de corpo presente e espírito alheado, sempre ausente,

- não serves para nada!

sentenciava a mãe. Chico virava as costas, voltava a enfiar-se no sofá, pregava os olhos na televisão, fingia viajar.

- Ainda há chocolate, mãe?

- Há uma tableta, mas é para a Teresinha, já sabes que ela aprecia.

O tempo cumpria a sua função, umas vezes mais devagar do que outras. O corpo robusteceu-se, ganhou forma de homem feito. Tinha passado por menino, mais ou menos silencioso, ouvindo as lamúrias da mãe que embriagava no próprio eco e no pai, que de pai gastava só o nome, pois o seu tempo era feito de outros caminhos. E sempre a voz daquela mulher, carregando os mesmos lamentos, carinhosamente cultivados e regados para que não murchassem. Chico enfiava-se no sofá, ansiando pela atenção há muito esperada, que não chegava.

E desistiu. Um dia chegou, bateu com a porta e partiu.

Abriu os olhos e afiou as garras. Cresceu de Chico a Francisco. Fez coisas. Ganhou, perdeu. E esperou. Casou, sonhou, esperou. Descasou. Vagueou por muito lado, carregou o sonho e a mágoa. Procurou o ontem nos dias de hoje,

- talvez amanhã seja diferente,

olhou o presente com a mágoa do passado. Tinha uma sede antiga que não passava. Em todas procurava essa água, um copo cheio, mas era sempre pouco. Desconfiava, irritava-se, enciumava. Cobrava as atenções a qualquer um, exigia respeito. Precisava de si, precisava urgentemente de si, precisava que o ouvissem e o seguissem. Abandonara o sofá onde os seus olhos belos e grandes observavam o vazio da casa cheia de ais, mas seguia às cegas, de grandes olhos abertos. E era sempre o mesmo sonho, a mesma ausência…