E subitamente, a sua mulher desaparece, numa morte não anunciada. Passado o choque da surpresa amarga fica o vazio, desconcertante, e uma filha de 10 anos que pede cuidados redobrados, numa atenção que visa atenuar de alguma forma a perda da mãe.
A partir do momento do acidente, Pietro, agora pai e mãe de Cláudia, descura o emprego de sucesso, alheia-se, perde-se na dor que por vezes duvida que verdadeiramente sente, e centra a sua atenção na filha. Sem plano prévio vai-se deixando ficar sentado num banco de jardim em frente à escola de Cláudia, onde passa os dias. Devagar e sem pressas, o seu mundo é totalmente transferido para estes escassos metros quadrados sob o verde, por onde passam, rotineiramente, algumas personagens que habitam aquele espaço e que com ele vão criando laços: uma mãe que traz pela mão um filho deficiente mental que se habitua a um inofensivo jogo com o carro de Pietro; uma rapariga loura e bonita que todos os dias passeia o cão no jardim; o dono do pequeno café onde Pietro passa a almoçar; a professora de Cláudia que o vai pondo ao corrente da evolução da filha na escola...
Por este banco de jardim vão desfilando todas as outras personagens da vida de Pietro, do irmão à cunhada, passando pelos colegas de trabalho que o visitam no seu novo "escritório" para desabafar, e terminando numa estranha mulher que ele salvou de morrer afogada numa praia e que cruzou uma vez mais a sua vida com a do protagonista da história.
Caos calmo, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance de Sandro Veronesi. Na senda de O quarto do filho, Nanni Moretti disserta uma vez mais sobre a dor da perda e sobre as mudanças que essa perda pode acarretar. Neste caso, um caos calmo, já que aparentemente muito controlado e sem lágrimas, quase levantando a suspeita de uma ausência de sofrimento. Esta pausa que acaba por fazer no seu quotidiano permite-lhe a reflexão e um olhar sobre os pequenos nadas e sobre o seu passado. Uma caminhada na descoberta dos outros.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
No banco com Pietro
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Paninhos quentes de paixão...
Passou a agulha pelo pano fazendo correr a linha vermelha, rematou e cortou. Pronto, mais um, pensou. Alisou o pequeno pano transformado em lenço, dobrou-o, voltou a dobrar. Pousou-o no cesto de verga que permanecia a seus pés, junto dos outros cinco que já tinha bordado e dobrado e guardou no cesto. Meia-dúzia certinha, como a Maria Júlia me pediu, contou ela para si.
Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…
Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…
A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.
Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.
Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…
Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…
A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.
Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Uma força tamanha
Um xaile e uma guitarra. É assim que Amália definiu, num momento, o que cantava.
Amália, o Filme, de Carlos Coelho da Silva, é uma biografia ficcionada, uma adaptação livre da vida da diva. Mas, e recorrendo ao povo, tão glosado no fado e por ela, onde há fumo há fogo. Desta feita, a selecção dos momentos vividos, se bem que obviamente discricionária, pretende ilustrar os pontos-chave da sua carreira e da sua vida pessoal e caracterizar o seu carácter.
O filme inicia-se numa linguagem contrária à do neo-realismo cinematográfico, ao pintar em tons suaves os cenários de uma pobreza branquinha e a cheirar a lavado, que carrega nos clichés de forma tão forte que quase torna irreal as suas cenas, mais parecendo uma pobreza à Estado Novo, de tão limpinha que se apresenta. Mas, ultrapassada esta fase da infância da fadista, e centrando-me em aspectos que considero mais marcantes no filme, saliente-se a cena de abertura, em 1984, com uma Amália de 64 anos, em Nova Iorque, completamente desesperada e tão cheia de amargura que ensaia um suicídio, absolutamente dramático. Uma cena de uma plasticidade bonita, a que se sobrepõem planos em flashes de memórias antigas, todas elas também dramáticas ou traumatizantes e que, de alguma forma, contribuiriam para as tendências suicidas da artista. Aliás, esta cena de Nova Iorque é recorrente ao longo do filme, com um telefone que toca e não responde, oferecendo um clima tenso e trágico e que, só no final, se revela feliz.
Mas, mais do que os aspectos cinematográficos propriamente ditos, com uma excelente composição da actriz principal e óptimas interpretações dos restantes actores, salienta-se o carácter impetuoso e vincado de Amália; os seus desamores e a busca incessante em ser feliz; o amor pela família e as desventuras; os relacionamentos com pessoas ligadas à política, designadamente à Oposição, bem como alguma complacência com a figura de Salazar, sem se identificar muito com qualquer ideal político mas sempre pronta a abraçar as pessoas e a causa humana. E, uma vez mais, a voz. Única, sentida e inconfundível. Que não era produzida pelas cordas vocais mas sim nascida das entranhas. Uma voz de uma força tamanha. Eterna, sem dúvida.
Com que voz – Amália Rodrigues
domingo, 7 de dezembro de 2008
Regresso ao passado...
"Regresso ao passado" - foto José Neves
Também ele reformado, cansado de já não o poder estar, apanha este comboio num derradeiro regresso ao passado, atrelando a si os netos que brincam, sem viajar. Porque a viagem é só dele, pertence-lhe, como lhe pertencem as memórias que lhe vão surgindo ao fitar o fumo deste vapor.
“Para onde vais tu, José?” – “ Vou fugir. Vou para longe… para trás…”
O desafio foi-me lançado por José Neves. Chegou há pouco, pelo correio, e convidava-me para escrever sobre a sua foto, aliás muito sugestiva. Escrevinhei assim sobre o que vi, num olhar que se juntou ao inicial, ao da foto do autor.
Reformadas. Repousam arrumadas neste presente silencioso, tão diferente da agitação de outrora. As carruagens.
Também ele reformado, cansado de já não o poder estar, apanha este comboio num derradeiro regresso ao passado, atrelando a si os netos que brincam, sem viajar. Porque a viagem é só dele, pertence-lhe, como lhe pertencem as memórias que lhe vão surgindo ao fitar o fumo deste vapor.
“Para onde vais tu, José?” – “ Vou fugir. Vou para longe… para trás…”
O desafio foi-me lançado por José Neves. Chegou há pouco, pelo correio, e convidava-me para escrever sobre a sua foto, aliás muito sugestiva. Escrevinhei assim sobre o que vi, num olhar que se juntou ao inicial, ao da foto do autor.
sábado, 6 de dezembro de 2008
Performance de mestre
"Star Wars" - an a cappella tribute to John Williams
Esta minha veia ligada à música voltou a sangrar ao ver e ouvir o que se segue. Para estancar a hemorragia o remédio consiste em apreciar com atenção, apesar de ser um bocadinho longo. Mas merece e vão ver que não dói nada.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
A espera...
Sabia-a nervosa, miudinha nos pequenos gestos que desenhava em torno de si mesma. Adivinhava-a roendo a unha do polegar direito, compondo a saia, balançando o pé. Sentia-a cada vez mais apressada, num compasso curto e pequenino, num tique-taque de relógio Swatch com o barulhinho irritante do tempo sempre igual.
Não a podia ver mas sabia que lá estava. Sabia também que, passada uma hora, por aí, se cansaria de esperar e sairia irritada pelo tempo gasto em vão. Pressentia que fosse recuperar esse tempo no centro comercial que ficava a 3 km apenas, que começaria pelo café engolido em seco e que afundaria as mágoas na montra daquela loja pequenina entalada entre a florista e a outra dos brinquedos.
Tinha a certeza que voltaria mais tarde, à noite, reatando a espera, encolhendo-se no sofá com o portátil nos joelhos. Conversas interrompidas, meias-palavras, pausas forçadas. De tudo um pouco era composto o seu tempo, esquecido de viver para se alongar neste ritmo morno, de cores pálidas.
Sabia-o ela também, mas teimava em esquecer. Porque esquecer era teimar em viver, esse tempo virtual e de espera mas que lhe alimentava a ilusão.
Observava-a um, por fora; sentia-se ela, por dentro. Um só tempo, duas visões. O mesmo final.
Num momento que não foi o mesmo, desligaram o botão e foram dormir.
Não a podia ver mas sabia que lá estava. Sabia também que, passada uma hora, por aí, se cansaria de esperar e sairia irritada pelo tempo gasto em vão. Pressentia que fosse recuperar esse tempo no centro comercial que ficava a 3 km apenas, que começaria pelo café engolido em seco e que afundaria as mágoas na montra daquela loja pequenina entalada entre a florista e a outra dos brinquedos.
Tinha a certeza que voltaria mais tarde, à noite, reatando a espera, encolhendo-se no sofá com o portátil nos joelhos. Conversas interrompidas, meias-palavras, pausas forçadas. De tudo um pouco era composto o seu tempo, esquecido de viver para se alongar neste ritmo morno, de cores pálidas.
Sabia-o ela também, mas teimava em esquecer. Porque esquecer era teimar em viver, esse tempo virtual e de espera mas que lhe alimentava a ilusão.
Observava-a um, por fora; sentia-se ela, por dentro. Um só tempo, duas visões. O mesmo final.
Num momento que não foi o mesmo, desligaram o botão e foram dormir.
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