quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

No banco com Pietro


E subitamente, a sua mulher desaparece, numa morte não anunciada. Passado o choque da surpresa amarga fica o vazio, desconcertante, e uma filha de 10 anos que pede cuidados redobrados, numa atenção que visa atenuar de alguma forma a perda da mãe.

A partir do momento do acidente, Pietro, agora pai e mãe de Cláudia, descura o emprego de sucesso, alheia-se, perde-se na dor que por vezes duvida que verdadeiramente sente, e centra a sua atenção na filha. Sem plano prévio vai-se deixando ficar sentado num banco de jardim em frente à escola de Cláudia, onde passa os dias. Devagar e sem pressas, o seu mundo é totalmente transferido para estes escassos metros quadrados sob o verde, por onde passam, rotineiramente, algumas personagens que habitam aquele espaço e que com ele vão criando laços: uma mãe que traz pela mão um filho deficiente mental que se habitua a um inofensivo jogo com o carro de Pietro; uma rapariga loura e bonita que todos os dias passeia o cão no jardim; o dono do pequeno café onde Pietro passa a almoçar; a professora de Cláudia que o vai pondo ao corrente da evolução da filha na escola...

Por este banco de jardim vão desfilando todas as outras personagens da vida de Pietro, do irmão à cunhada, passando pelos colegas de trabalho que o visitam no seu novo "escritório" para desabafar, e terminando numa estranha mulher que ele salvou de morrer afogada numa praia e que cruzou uma vez mais a sua vida com a do protagonista da história.

Caos calmo, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance de Sandro Veronesi. Na senda de O quarto do filho, Nanni Moretti disserta uma vez mais sobre a dor da perda e sobre as mudanças que essa perda pode acarretar. Neste caso, um caos calmo, já que aparentemente muito controlado e sem lágrimas, quase levantando a suspeita de uma ausência de sofrimento. Esta pausa que acaba por fazer no seu quotidiano permite-lhe a reflexão e um olhar sobre os pequenos nadas e sobre o seu passado. Uma caminhada na descoberta dos outros.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Paninhos quentes de paixão...

(foto tirada numa montra de Braga - Paula Crespo)


Passou a agulha pelo pano fazendo correr a linha vermelha, rematou e cortou. Pronto, mais um, pensou. Alisou o pequeno pano transformado em lenço, dobrou-o, voltou a dobrar. Pousou-o no cesto de verga que permanecia a seus pés, junto dos outros cinco que já tinha bordado e dobrado e guardou no cesto. Meia-dúzia certinha, como a Maria Júlia me pediu, contou ela para si.

Recostou as costas cansadas e curvas contra a parede fria de pedra e o seu olhar atravessou a vidraça. Lá fora, começava a chover uma água miudinha e mole, adivinhando uma noite ainda mais fria que a anterior. Voltou a olhar para o cesto, pegou e desdobrou o último paninho bordado transformado em lenço e sorriu mansinho. Já lá iam muitos anos desde o primeiro, bordado entre palpitações e rubores pelo seu António, que lho ofereceria na Páscoa. O mesmo António que lhe rondava a janela pela manhã e lhe atirava frases bonitas lá mais pela tardinha, quando voltava do campo, à socapa da Ti Bárbara que se o apanhasse a jeito lhe diria das boas…

Aconchegou o xaile sobre os ombros e vagueou na memória dos dias passados. Dos anos passados e distantes em que, rapariga nova, se juntava às tardes no grupo das casadoiras para bordarem enxovais e tagarelarem sonhos difusos, mal desenhados ainda mas que prometiam dias de sol e fartura numa terra de miséria e cinto apertado. Que a fome nunca lhes bateu à porta, é certo, mas as larguezas na mesa não se faziam notadas. Tempos idos, de privação, a que se lhes seguiram outros tempos de adeus e de promessas de regresso dos homens da terra que partiam para um amanhã melhor. Melhor…

A Maria Júlia não tardaria a chegar. Tinha prometido vir lá pelas sete para apanhar a encomenda e a tempo ainda de preparar o jantar dos netos, que pousaram lá em casa durante uns dias. Amanhã é dia de feira e a cliente queria ver os lencinhos, a ver se gostava… Queria ver os lencinhos típicos da região, disse ela, daqueles com versos, às cores. Daqueles que falam de quem suspira e de corações que morrem de amor. E o teu, por quem morrerá?, pensou. Por ninguém, suspira ela, que alguém se antecipou e morreu primeiro sem se despedir, deixando-a com os lenços para enxugar os olhos tristes. E viver mete muita água, a começar pela do choro, que vem do nascer e nos acompanha, em visitas mais frequentes nuns que noutros.

Ouviu o seu nome chamado da porta. Levantou-se, arrastando-se devagar e foi atender a Maria Júlia.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Uma força tamanha

(Foto da Internet)

Um xaile e uma guitarra. É assim que Amália definiu, num momento, o que cantava.

Amália, o Filme, de Carlos Coelho da Silva, é uma biografia ficcionada, uma adaptação livre da vida da diva. Mas, e recorrendo ao povo, tão glosado no fado e por ela, onde há fumo há fogo. Desta feita, a selecção dos momentos vividos, se bem que obviamente discricionária, pretende ilustrar os pontos-chave da sua carreira e da sua vida pessoal e caracterizar o seu carácter.

O filme inicia-se numa linguagem contrária à do neo-realismo cinematográfico, ao pintar em tons suaves os cenários de uma pobreza branquinha e a cheirar a lavado, que carrega nos clichés de forma tão forte que quase torna irreal as suas cenas, mais parecendo uma pobreza à Estado Novo, de tão limpinha que se apresenta. Mas, ultrapassada esta fase da infância da fadista, e centrando-me em aspectos que considero mais marcantes no filme, saliente-se a cena de abertura, em 1984, com uma Amália de 64 anos, em Nova Iorque, completamente desesperada e tão cheia de amargura que ensaia um suicídio, absolutamente dramático. Uma cena de uma plasticidade bonita, a que se sobrepõem planos em flashes de memórias antigas, todas elas também dramáticas ou traumatizantes e que, de alguma forma, contribuiriam para as tendências suicidas da artista. Aliás, esta cena de Nova Iorque é recorrente ao longo do filme, com um telefone que toca e não responde, oferecendo um clima tenso e trágico e que, só no final, se revela feliz.

Mas, mais do que os aspectos cinematográficos propriamente ditos, com uma excelente composição da actriz principal e óptimas interpretações dos restantes actores, salienta-se o carácter impetuoso e vincado de Amália; os seus desamores e a busca incessante em ser feliz; o amor pela família e as desventuras; os relacionamentos com pessoas ligadas à política, designadamente à Oposição, bem como alguma complacência com a figura de Salazar, sem se identificar muito com qualquer ideal político mas sempre pronta a abraçar as pessoas e a causa humana. E, uma vez mais, a voz. Única, sentida e inconfundível. Que não era produzida pelas cordas vocais mas sim nascida das entranhas. Uma voz de uma força tamanha. Eterna, sem dúvida.


Com que voz – Amália Rodrigues

domingo, 7 de dezembro de 2008

Regresso ao passado...

"Regresso ao passado" - foto José Neves


Reformadas. Repousam arrumadas neste presente silencioso, tão diferente da agitação de outrora. As carruagens.

Também ele reformado, cansado de já não o poder estar, apanha este comboio num derradeiro regresso ao passado, atrelando a si os netos que brincam, sem viajar. Porque a viagem é só dele, pertence-lhe, como lhe pertencem as memórias que lhe vão surgindo ao fitar o fumo deste vapor.

“Para onde vais tu, José?” – “ Vou fugir. Vou para longe… para trás…”



O desafio foi-me lançado por José Neves. Chegou há pouco, pelo correio, e convidava-me para escrever sobre a sua foto, aliás muito sugestiva. Escrevinhei assim sobre o que vi, num olhar que se juntou ao inicial, ao da foto do autor.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Performance de mestre


"Star Wars" - an a cappella tribute to John Williams

Esta minha veia ligada à música voltou a sangrar ao ver e ouvir o que se segue. Para estancar a hemorragia o remédio consiste em apreciar com atenção, apesar de ser um bocadinho longo. Mas merece e vão ver que não dói nada.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A espera...

(Imagem da Internet)

Sabia-a nervosa, miudinha nos pequenos gestos que desenhava em torno de si mesma. Adivinhava-a roendo a unha do polegar direito, compondo a saia, balançando o pé. Sentia-a cada vez mais apressada, num compasso curto e pequenino, num tique-taque de relógio Swatch com o barulhinho irritante do tempo sempre igual.

Não a podia ver mas sabia que lá estava. Sabia também que, passada uma hora, por aí, se cansaria de esperar e sairia irritada pelo tempo gasto em vão. Pressentia que fosse recuperar esse tempo no centro comercial que ficava a 3 km apenas, que começaria pelo café engolido em seco e que afundaria as mágoas na montra daquela loja pequenina entalada entre a florista e a outra dos brinquedos.

Tinha a certeza que voltaria mais tarde, à noite, reatando a espera, encolhendo-se no sofá com o portátil nos joelhos. Conversas interrompidas, meias-palavras, pausas forçadas. De tudo um pouco era composto o seu tempo, esquecido de viver para se alongar neste ritmo morno, de cores pálidas.

Sabia-o ela também, mas teimava em esquecer. Porque esquecer era teimar em viver, esse tempo virtual e de espera mas que lhe alimentava a ilusão.

Observava-a um, por fora; sentia-se ela, por dentro. Um só tempo, duas visões. O mesmo final.
Num momento que não foi o mesmo, desligaram o botão e foram dormir.