segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Oxalá

Imagem tirada daqui

Nesta época de Gingle Bells, cada vez com menos espírito e mais matéria, principalmente da que enche as bancas das lojas sempre iguais, aguardo paciente que o espírito desça e me ilumine; e o pior é que ele, cada ano que passa, tarda em descer.

De tudo o que se tem inventado sobre esta época e sobre o dito espírito, recordo a propósito uma troca de ideias com alguém que me citava outro alguém que, recentemente, tinha proferido umas curiosas palavras:

O Natal não é quando um homem quiser. Ele acontece quando alguém nos quer.

Fiquei a magicar naquela frase, que foi tomando forma até se me provar ser verdadeira. Ou, melhor dizendo, ser um fim em si mesma, um objectivo. Se ele (Natal)é magia, então não basta pensarmos que conduzimos e lideramos e que tudo acontece por nossa exclusiva iniciativa. Ou melhor, a magia estará na reciprocidade: depende do que o Outro vê em nós o que, por sua vez, depende daquilo que nós lhe daremos a ver.

Isto pode parecer meio embrulhado. A culpa deve de ser do excesso de açúcar no cérebro, certamente, fruto desta época… Mas numa altura em que se fazem os tradicionais votos de mudança, à vista de um novo ano que nos bate à porta, talvez o melhor voto seja que consigamos ser capazes de aproveitar as oportunidades que ele nos trará e reconhecer nos pequenos nadas a possibilidade de sermos felizes.

Oxalá.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Raios de sol

Imagem daqui


Nunca tinha cá vindo, apesar de já ter ouvido falar dele. Disse.

Terminaram o cigarro à porta e entraram. Escolhidos os prazeres que se seguiriam, fizeram o tempo render, entre garfadas e goles de tinto. O frio de Dezembro deu lugar a um calor servido na travessa e na conversa. De pequenas estórias e outras divagações, das memórias a outros nadas, a partilha marcou presença, no riso e no trocadilho que só eles entendem. Como se chamava o post?, pergunta. Disseste?..., responde. Códigos de um universo restrito que surgem em círculo, na tontura de um tagarelar redondo. E mais risos.

É uma sensação morna de aconchego. Sonha-se a parceria, assente nesta base de entendimento. Depois de um inverno interior que havia começado precocemente sabia bem uma tarde ensolarada. Sol de pouca dura, adivinhava-se, que a maré não andava propícia. Mas, e ainda assim, valia a pena saboreá-la. Lembrou-se de um registo antigo que corroborava esta ideia, espelhada numa afirmação de Mick Jagger publicada o ano passado numa revista da especialidade: Não olho para as nuvens de amanhã através do sol de hoje. Ele há gente inteligente! Quando for grande também quero ser assim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quotidianos do cor-de-rosa

Imagem tirada daqui


Saí para comprar bolos e regressei com um candeeiro na mão. Assim mesmo.

Desde o tempo em que os animais falavam que andava para comprar um candeeiro para um espaço lá de casa, mas não havia maneira. Ou por isto, ou por aquilo, ou porque não. E todos sabemos como é difícil ter uma ideia feita, bem esculpida, dentro da nossa cabeça, e encontrá-la materializada lá fora, leia-se numa loja, ali mesmo à mão de semear, disponível para a pegarmos e levarmos connosco.

Aproveitei uma aberta na chuva de Outono e saí, para comprar bolos. Nem gulosa sou (só por pudins!...), só que nesse instante pensei que um bolo seria um bom remate daquilo a que chamei almoço, um mimo. Mas, pés na rua, e os passos fizeram-me ignorar a pastelaria em questão e puseram-me a subir a calçada. Deve de ser um sintoma típico do cor-de-rosa, do feminino, isto de não ir direito ao assunto, de tornear e dar voltinhas, tropeçando em mil e uma coisas neste ziguezaguear habitual. Espreitei duas lojas de chinês, passei as mãos por umas quantas peças, imitações de outras mais bem acabadas. Olhei em redor e apreciei genericamente o brique-à-braque destes espaços que, em boa verdade, não apresentam grande originalidade, a não ser que aceitemos como original um conjunto infindável de imitações baratas. Olhei para muito e decidi-me por nada.

Saí, e continuei a subir a calçada, lembrando-me de que há uma loja de pequenos nadas absolutamente fantásticos, com um certo look neo-pop que sempre me fascinou. Vou passar por lá, pensei. E, como é óbvio, não passei, até porque “descobri” esta outra de candeeiros…

Já com a compra realizada e transportando um saco enorme e transparente, voltei ao local de origem, àquele de onde tinha saído com a firme intenção de me mimar com um bolo. Pelo caminho, as imagens do costume: janelas pequenas em rés-do-chão rasteiros, uma velha senhora de óculos redondos encavalitados no sítio que é suposto, fachadas gastas pelo tempo e outros sinais de um bairro antigo e familiar.

No final de contas, o mimo foi alcançado. Não o que tinha na ideia mas o outro, mais antigo e consistente. E se me perguntarem se para mim é mais bolos, direi: hum, talvez não!...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A sentença

Imagem tirada daqui

Maria, jovem casadoira de uma família de seis rebentos. Antero, jovem igualmente casadoiro e promissor, galante e galado. Ambos respiram o ar da mesma vila do interior, um ar que percorria os anos cinquenta do século anterior. Tempos passados.

Maria e Antero trocam olhares e suspiros e sonham sonhos que guardam para si. Aos poucos, esses mesmos sonhos vão-se tornando públicos e aceites por ambas as famílias, a dos seis rebentos e a outra, da qual não há memória de quantos ramos teria.

Antero, o jovem galante e promissor, atreveu-se a sair da redoma daquela vila do interior e arriscar-se até outra vila do litoral, em negócios que também fariam certamente parte dos seus sonhos, sonhos de alcançar um bem-estar maior, um estatuto maior, ser dono e patrão e poder regressar à vila do interior e resgatar Maria para ser sua dona e patroa e.

O tempo foi passando e os sonhos de Maria e Antero registavam-se em cartas, muitas, trocadas num vaivém lento entre o interior e o litoral, um vaivém curto, já que estreito é também o país.
O tempo foi passando e Antero aventura-se por outros territórios, descuida-se, distrai-se, retarda-se no seu sonho maior de resgatar Maria e, sem aviso nem querer, surge uma nova realidade na sua vida, uma nova vida, pequena, que chora e mama, de uma outra mãe que não a tão amada.

A notícia segue o seu curso no vaivém lento, desta vez em sentido único, do litoral para o interior. Aí chegou e sepultou-se. Caiu como um petardo, provocando estragos irreparáveis. Entre lágrimas e desilusões, soa a sentença da mater família, uma mãe pequena e austera, dura, talhada pela vida agreste de ter de dar rumo sozinha aos seis rebentos por si gerados. “Ele que pague a quem deve!” Eis o dedo acusador, a profecia maldita, o corte abrupto dos sonhos de Maria e Antero. Ele tinha viciado as regras do jogo, as mesmas que ditavam um comportamento vincado e irrepreensível e outras duras regras impunham que o seu vício fosse limpo pela assinatura de um contrato de casamento com aquela que não dormia nos seus sonhos, mas que lhe tinha dado esta nova pequena vida que chorava e mamava e teimava em crescer. E assim se reporia a verdade dos factos e se tapariam as bocas do mundo.

Sentença cumprida. Ele permanece no litoral, cresce no seu sonho de patrão e mingua no seu sonho de amor. Adapta-se, talvez. Ajusta-se. Sempre que encontra um familiar dela, por mais afastado que seja, conduz a conversa com um brilho nos olhos e pergunta por novidades. “Está bem? É feliz?”. Feliz não foi, arrecadada mais tarde por outro, viúvo e instalado na vida. Arrumou-se, como se usava dizer à época.
Arrumou o sonho e fechou-se dentro de casa. Deixou de ser, antes mesmo de ter conseguido sê-lo. Afável, doce e laboriosa, viu chegarem os cabelos brancos e abalar-se-lhe a voz. Morreu há muito, de leque na mão, numa cama de hospital. Com falta de ar. Teria feito quase cem anos, no dia das castanhas.