quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Palavras sem sentido

Automat (1927), de Edward Hopper

Tinha umas palavras alinhavadas agarradas ao fundo de um outro texto num qualquer documento gravado, mas não as encontrava. Abri e fechei todas as pastas possíveis e nada. Sabia que era uma história de uma mulher que aguardava ser chamada para uma consulta mas a chamada tardava. Assim como já tardava o reencontro com essa pequena história, algures guardada numa qualquer pasta que teimava em não aparecer.

Seriam palavras sem sentido mas ainda assim tinha-lhes afeição, vá lá saber-se porquê!, e isto de deixar palavras soltas por aí era coisa que não me agradava… Até porque a sorte dessa mulher que esperava ouvir o seu nome ditado pelo altifalante do consultório médico começava a angustiar-me; essa espera prolongada não me estava nos hábitos e deixar alguém assim entregue à sua sorte afligia-me.

Saltitava entre ideias, enredada em começos de outras histórias, todas elas embrulhadas em inícios estranhos e com fins duvidosos, ao mesmo tempo que uma mulher sentada numa sala de espera de um qualquer consultório permanecia no meu espírito. Preocupava-me. Já a conhecia há algum tempo e pressentia-a ansiosa, de vinco na testa, consultando o relógio a cada trinta segundos e apurando o ouvido na esperança do nome anunciado. Mas nada.

Pensei chamar alguém que viesse em meu auxílio: não um médico ou enfermeiro, que para isso lá continuaria a mulher sentada na sala de espera do consultório, que era para esse fim que tinha encaminhado os passos, mas de outro tipo de auxílio, talvez mais técnico, talvez informático, que uma mulher sozinha, perdida entre bits e bites, angustiava-me.

Experimentei a velha técnica de desligar e voltar a ligar, que isto nunca se sabe… Aguardei uns minutos, que a máquina já não era nova e cansava-se nestas andanças de cá para lá. Ao virar de uma esquina tecnológica lá apareceu a pobre, cansada, esgotada de tanto esperar um final para a sua história sem sentido nenhum. Alegrou-se-lhe o rosto, o dela e o meu, e tomei-a pela mão. A sua espera segue dentro de momentos, exactamente no ponto onde a tinha abandonado…

Cá está ela, sentada. É alta e magra, e leva a mão ao cabelo num tique repetido amiúde, compondo uma madeixa teimosa que lhe descai sobre a testa. Os olhos vagueiam por uma revista fora de prazo que segura sem convicção, voltando as páginas para a frente e para trás.

Um nome surgiu no altifalante. Era agora. Levantou-se, pegou na mala atafulhada de inutilidades diárias, na gabardine e seguiu. Seguiu em frente até virar no corredor à esquerda e desaparecer numa porta estreita com uma maçaneta quebrada.

Voltou passados vinte minutos. Da conversa dentro de portas não adivinhava o rasto, somente o seu ar preocupado deixava antever um resultado menos feliz, ou mais apreensivo. Dirigiu-se ao balcão e recebeu um carimbo num papel, outro noutro e saiu, passando a curta distância de mim que a observava. Olhava-a... Para onde iria ela, que caminho seguiria? Não sabia, mas as ideias surgiam-me calmas, primeiro cinzentas, esfumadas, depois carregando um pouco mais nos tons, ganhando forma. Certamente iria para casa, colher o aconchego de um calor familiar que lhe lamberia as feridas da alma provocadas por uma notícia mais preocupante. Ou certamente, ainda, iria trabalhar, calando a mesma notícia preocupante que procuraria disfarçar num rosto sem expressão, para deixar à porta do gabinete o que lhe martelava o cérebro e lhe dificultaria a concentração. Ou, certamente também, nem uma coisa nem outra, antes encaminharia os passos para uma qualquer rua apinhada de gente, onde se esconderia na multidão e não teria de se preocupar em escolher um rosto diferente para mascarar a preocupante notícia que acabara de ouvir. Ou, com toda a certeza ainda, apressaria o passo em direcção ao laboratório recomendado e anularia as dúvidas numa outra certeza mais desejada.

O altifalante na sala de espera continuava a debitar nomes que ganhavam corpo e se levantavam, em direcção ao corredor com portas estreitas. Já só tinha uma pessoa à minha frente para ser atendida. Deitei uma olhadela à mala, à gabardine bege que tinha pousado na cadeira a meu lado e fiz recolher esta mulher de rosto preocupado para dentro da pasta de documentos, não sem antes ter escrito um ponto final. Desliguei o computador e fechei a tampa. O altifalante debitou então um nome que identifiquei como meu.

19 comentários:

nocas verde disse...

fantástico.
Sempre me impressionou o que encerram esses tantos olhos com que nos cruzamos nas longas esperas em consultórios, repartições e afins... (a mim calham-me sempre uns personagens faladores ao extremo - dava quase um livro o que já ouvi)
fantástico...

Anónimo disse...

Escreve-se bem por aqui.


Abraços d´ASSIMETRIA DO PERFEITO

Paula Crespo disse...

LB,
Bom, ter conseguido ganhar ao grito do telefone já é um sucesso a considerar!! ;);)
Obrigada pelo simpático comentário, Luís :)
Bjo

Paula Crespo disse...

Nocas,
E já pensou em tentar reconstituir o crime e lembra-se de algumas delas??? Isso é que era um bom registo! :)

Paula Crespo disse...

Miguel,
Obrigada :) Por aqui e por ali, com assimetrias perfeitas... ;)

CPrice disse...

confesso que prefiro estes teus textos Paula .. o segurar da personagem com o cuidado de um cirugião e colocá-la bem perto de nós leitores, quase a olhar-nos de frente..!

Parabéns mais uma vez* que me repito, eu sei.

:)

BlueVelvet disse...

Em primeiro lugar as minhas desculpas por só hoje vir agradecer a gentileza que muito me comoveu, de ir ao meu blog dar-me os parabéns pelo aniversário do meu filho.
Depois dizer-lhe que tem decerto a noção que aqui escreveu um belíssimo e angustiante texto.
A angústia de alguém que provavelmente não tem ninguém para partilhar a sua dor, quiçá a sua doença.
Excelente Paula.
Ah, já me esquecia: assim que puder, dê um saltinho ao BlueVelvet.
Tem lá umas coisinhas para recolher.
beijinhos

Flip disse...

que pena terem-te chamado Paula... :-)
tá tudo bem? hope so...
bjs

Paula Crespo disse...

Once,
Bom, pegando nas tuas palavras, será assim uma espécie de um tête à tête com as personagens... ;)
Obrigada pelo teu estímulo! :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Blue,
Obrigada!! :)
Já lá fui espreitar, sim! Que honra!... :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Flip,
Tudo bem, felizmente. Sabes, é a vantagem das ficções... :):)
Bjs

Fernando K. Montenegro disse...

Interessante a narrativa.
Muito mesmo.

Voltarei. Se me permites.

Excelente descrição e contemplação.

Paula Crespo disse...

Lorenzo,
Obrigada pelo comentário. Volta sempre.... com toda a permissão :)

mariam [Maria Martins] disse...

magnific!
muitos parabéns!
adorei o texto, revivi momentos parecidos rsrsrs mas a que não consegui dar-lhes este sentido poético!
adorei o parágrafo "Um nome surgiu no altifalante. Era agora. Levantou-se..... Seguiu em frente até virar no corredor à esquerda e desaparecer numa porta estreita com uma maçaneta quebrada."

um sorriso :)
mariam

PB disse...

Grande texto! Adorei...

Paula Crespo disse...

Mariam,
Creio que esta "estória" é um déja vu para todos nós... ;)
Bjs

Paula Crespo disse...

Pedro,
Obrigada!... :):)

paulofski disse...

Deixei a leitura deste texto para uma oportunidade merecedora de maior atenção. De certa forma assisto invariavelmente com angústias pessoais desse tipo, tão bem retrarata e guardada na tua pasta de documentos. Belo texto.

Paula Crespo disse...

Paulofski,
Agradecida pelo comentário... :)