domingo, 20 de janeiro de 2008

Em jeito de poema...


Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam , por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou. Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu. Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma implacável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte poderia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

José Saramago - As intermitências da Morte (excerto gentilmente partilhado pela Gi)

2 comentários:

Outonodesconhecido disse...

Olá Paula. Vim deixar-te votos de uma boa semana.
Deparo com Saramago, não comento, não pela qualidade do texto, dos livros e do que escreve, mas porque é das únicas pessoas que me irrita profundamente: arrogãncia, petulância e outras coisas mais que convém naõ escrever. É a unica pessoa que me faz sentir fundamentalista. MAs adorei a história do Cerco de Lisboa, imaginei que era outro escritor, tal como a Memorial do Convento...
Desculpa o desbafo: mas é que eu conheço o homem

Paula Crespo disse...

Outono,
Acredito que seja; eu só conheço o escritor. Mas desse gosto. E, face à sua obra é que me pronuncio; é isso que me interessa (com todo o respeito por opiniões diferentes da minha, mas penso que não devemos misturar as coisas...)
Bjs