sábado, 24 de novembro de 2007

O eu fora de mim

Fotógrafo: Rui Bento Alves (http://olhares.aeiou.pt)


O dia em que o eu me deixou

foi um dia que não me é fácil recordar. em especial por causa do comportamento inesperado do eu nessa tarde terrível. já há alguns anos que não nos dávamos bem. andávamos sempre magoados um com o outro. mas nesse dia foi demais. o eu disse-me que já estava farto de todas as frases em que o colocava. quando pensava, quando escrevia, quando falava. obrigava-o a fazer o que ele não queria fazer de modo algum. por exemplo, projectar-se num ponto de vista que não era o dele. viver uma dor ou uma alegria que não eram as suas. isso, atirou-me ele à cara, dava à sua existência uma intensidade difícil de suportar. disse-lhe que não percebia o que é que ele queria dizer com isso. e ele continuou, exaltado: como é que é possível viver com a consciência de que sou uma forma a tentar comunicar? não me deixas tranquilo a teu lado. dizes que posso contar contigo, mas nunca sei como nem quando. abandonas-me ao fluxo contínuo da tua imaginação. transformas-me constantemente os desejos. eu queria uma vida mais sólida, com predicados definidos. um ponto de onde te avistasse sempre do mesmo ângulo. já não aguento mais viver contigo . esta foi a última frase que lhe ouvi antes de sair porta fora. não sabia o que pensar ou o que sentir nesse momento. ainda não sei. e é a primeira vez que falo disto sem chorar desde que o eu me deixou.
Manuel Portela

1 comentário:

Eridanus disse...

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essa partida, para fora, do teu eu,
foi só uma partida que o teu eu te pregou,
deixou-te pregada na saudade,
abandonou-se,
a quem quis que lhe chamasse seu
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só te resta fora de ti,
aquele que quiseras que fora teu,
só te resta cair em ti,
que ele, agora, é meu!
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com todo o respeito e imenso atrevimento :)