Ontem à noite, num seminário dedicado às questões da Tradução, o debate girava em torno da dignificação da actividade de tradutor ou, melhor dizendo, do reconhecimento do tradutor enquanto autor de uma obra. A ideia-chave consiste em que a versão traduzida não reflecte apenas a mudança da língua, mas, sobretudo, intrerpreta o original, reescrevendo a obra para uma língua e uma realidade que não a primeira em que foi escrita - o que envolve o tradutor na autoria do livro.
A este propósito passo a transcrever o excerto de A Solidão Reinventada, de Paul Auster, com tradução de Ana Luísa Faria:
"O Livro da Memória. Livro Nono.
Durante a maior parte da sua vida adulta, ganhou a vida traduzindo livros de outros escritores. Senta-se à secretária a ler o livro em francês, e depois pega na caneta e escreve o mesmo livro em inglês. É o mesmo livro e ao mesmo tempo não é o mesmo livro, e a estranheza desta actividade nunca deixou de o impressionar. Cada livro é uma imagem de solidão. É um objecto tangível que se pode agarrar, poisar, abrir e fechar, e as suas palavras representam muitos meses, senão muitos anos, da solidão de um homem, de forma que a cada palavra lida num livro poderíamos dizer para connosco que nos confrontamos com uma partícula dessa solidão. Um homem sentado num quarto a escrever. Quer o livro fale de solidão, quer de companheirismo, é necessariamente fruto da solidão. A. senta-se no seu quarto para traduzir o livro de outra pessoa, e é como se sentasse na solidão dessa pessoa e a fizesse sua. Mas está claro que isso é impossível. Porque uma vez quebrada, uma vez assumida por outrem, a solidão deixa de ser solidão, para se tornar uma espécie de companheirismo. Ainda que só esteja uma pessoa no quarto, estão lá duas. A. imagina-se como uma espécie de fantasma dessa outra pessoa, que ao mesmo tempo está e não está ali, e cujo livro é e ao mesmo tempo não é o mesmo que ele vai traduzindo. É, pois, possível, diz para consigo, estar e não estar simultaneamente sózinho.
Uma palavra transforma-se noutra palavra, uma coisa transforma-se noutra coisa. Trabalha assim, diz para consigo, do mesmo modo que trabalha a memória. Imagina dentro de si uma imensa Babel. Há um texto, e o texto traduz-se num número infinito de línguas. As frases jorram de dentro dele à velocidade do pensamento, e cada palavra pertence a um idioma diferente, mil línguas que ao mesmo tempo clamam dentro dele, e cujo alarido ressoa através de um labirinto de quartos, corredores e escadarias, com centenas e centenas de andares. Repete uma vez mais. No espaço da memória, tudo é ao mesmo tempo aquilo que é e outra coisa. E ocorre-lhe então que tudo o que está a tentar registar no Livro da Memória, tudo o que até agora escreveu, não é mais que a tradução de um instante ou dois da sua vida - esses instantes que viveu na véspera de Natal de 1979, no seu quarto de Varick Street."
Paul Auster, A Solidão Reinventada, trad. Ana luísa Faria, Venda Nova, Bertrand Editora, 1994, pp. 188-189.
1 comentário:
Ando para me dedicar a Paul Auster há algum tempo mas não tenho conseguido.Acho que vaiser desta vez.
Obrigada pela dica e pela visita ao jasmimdomeuquintal
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