domingo, 7 de novembro de 2010

O senhor João

Afastou com a ponta dos dedos a cortina branca da janela e espreitou pela vidraça. Ao fim da tarde, já pouca luz restava, já a sombra vinha comendo aquela rua estreita, o passeio, o prédio da dona Deolinda que morara mesmo em frente, no primeiro andar, mas João nem notava, de tal forma conhecia de olhos fechados a sua rua. Passava pouca gente àquela hora, quem regressava do emprego já tinha chegado e o frio não chamava para fora de casa, pelo contrário, percebia-se a luz das televisões por algumas das janelas que ainda permaneciam acordadas, antes do correr dos estores que anunciavam o sono dos seus donos.

João olhava para fora, com o olhar morno de quem tem tempo para esbanjar. Do terceiro andar do 26 assomou-se à janela uma rapariga, devia ter aí uns 25 anos, mais ou menos, não lhe sabia o nome, apenas que se tinha mudado para aquela casa onde dantes morava a dona Conceição e o senhor Ramiro, coitado, tinha ido desta para melhor faz aí uns cinco anos, à conta do coração que o desacompanhou de vez.

O olhar de João ainda se mantinha preso ao passeio da frente mas já o pensamento descia a rua, para se estancar à esquina onde João vivera anos a fio atrás do balcão da sua mercearia. Reinara sem rival naquela rua estreita e comprida, acompanhado pela Lurdes, sua mulher, que existia dentro de uma bata negra, na parte de trás da loja, encostada a um fogão que fritava rissóis e pastéis que as donas deolindas e outras levavam para os netos. O casal viera do Minho e assentara ali. A pequena mercearia de João e Lurdes era o centro daquele mundo estreito, habitado por adelaides, joaquinas, deolindas, ramiros e antónios. Havia também a dona Isaura, uma mulher da Beira Alta, madura e roliça, e o seu marido Carlos, que guiava a carrinha da Carvalhelhos. Dona Isaura era chamada à loja duas vezes por mês, para atender a chamada que vinha da terra. E lá descia a rua dona Isaura, apressada, com uma pequena angústia a assaltar-lhe o pensamento, sempre pronta para ouvir uma notícia má, a atender o telefone preto encafuado em cima da lista telefónica num nicho junto ao balcão. Será que a minha Aninhas está bem? Ai credo!, Deus me valha!, ouviu-a tantas vezes dizer.

A sua loja era um espaço acanhado, um pequeno mundo atafulhado de sacas de feijão e grão que era servido ao peso em medidas de lata e despejado para dentro dos sacos das freguesas. João inclinou a cabeça para trás e a sua memória trouxe-lhe o cheiro das compotas que a anafada Lurdes, dentro da sua inseparável bata preta e com um sorriso estampado na bochecha transpirada pelo fogão, costumava fazer. O do tomate era o que tinha mais saída, recorda, era o preferido da Isabelinha, que vivia no 72 e tinha duas irmãs, a Teresa e a Cristina. Muito diferentes, por sinal, essas gostavam era de ir lá a meio da tarde buscar iogurte natural da Vigor, em boiões de vidro, claro, que nessa época não havia outros.

Em frente vivia uma família com duas filhas. Destoavam deste mundo, não davam cavaco a ninguém. Muito independestes, dizia-se que ele era engenheiro e a mulher professora numa faculdade e vestiam uma roupas muito coloridas, em especial as raparigas. Mas esses não costumavam ir muito à sua loja, saíam cedo e voltavam tarde e não se davam com a vizinhança. Pois não, remata João, para si.

João espreita agora a rua em sentido contrário e olha até onde ela quase termina. A partir daí já não lhe desperta interesse, ali começava outro mundo que já não era o seu. Do seu, esse sim, tem saudades!... Era assim a vida daquela rua, há uns trinta e muitos anos. Um pequeno mundo fechado onde todos se conheciam. Todos, que tinham saído das suas terras e transplantado a ruralidade para esta rua, em doses mais controladas, é certo, mas ainda assim era uma nova pequena aldeia. Hoje João já não reconhece os passos de todos os que lá moram, nem lhes segue as horas, nem os caminhos. Da rapariga que parece ter 25 anos e que assomou por momentos à janela ele desconhece o nome. A sua mercearia há mais de uma década que deixou de vender enchidos minhotos para albergar brique-à-braque chinês. As donas deolindas foram morrendo; as casas, uma moribundam, outras renovam-se aos poucos para dar abrigo a gente sozinha ou a casalinhos jovens; e uma outra, lá ao fundo, do lado de quem desce, foi transformada em bar que já abriu e fechou vezes sem conta. É a vida!, suspirou João.

Libertou a cortina, presa dos seus dedos, afastou-se da janela e olhou para dentro, para o relógio de parede que lhe mostrava que eram horas de compor o estômago. E eu sem fome, protestou. Sobressaltou-se ao som do telefone e sorriu ao de leve com essa breve angústia, recordando-se da dona Isaura e das suas apoquentações em direcção ao seu telefone preto. Nós éramos assim, concluiu. Sem essas pequenas angústias nem sabíamos respirar: se alguma coisa mexia só podia ser ruim. Sorriu uma vez mais e chegou tarde junto do telefone. Branco, agora. Deixa, antes assim, disse num bocejo. Quem quiser que ligue de novo.

6 comentários:

JHPereira disse...

Estas mercearias eram de facto pontos importantes das vidas de todos bairros, ou pequenas aldeias de que são feitas as nossas cidades.Adorei o telefone que sem as pressas e angústias ficou branco.Muito bonito este texto. Parabens Paula.

Paula Crespo disse...

José,
Obrigada pelo comentário. De facto, a mudança do preto para o branco pretende marcar a diferença de registos...

paulofski disse...

As palavras falam por si e são extraordinárias. Imagens, momentos rostos enrugados que assomam dos confins da memória. O tempo é uma maçada.

Gostei de cá voltar.

Paula Crespo disse...

Paulofski,
Ou, como escreveu Peixoto,"o tempo transforma tudo em tempo".
Agradecida pela visita, volte sempre! :)

Fernando Lopes disse...

Memórias de um tempo perdido, em que a cidade ainda não deixava os seus velhos morrerem sozinhos, em que sabíamos o nome dos vizinhos, joga-se à bola na rua ou no jardim mais próximo.
Agora vivo numa caixa, encaixada entre outras caixas, com destinos paralelos que nunca se cruzam, nem para uma conversa.
Gostei do seu conto.
Vou voltar. Até breve.

Paula Crespo disse...

Fernando Lopes,
É verdade. O êxodo para as cidades provocou não só a desertificação do interior e dos pequenos centros urbanos, como fez nascer outro tipo de problemas sociais. Quantos mais somos, menos convivemos. A dinâmica social alterou-se e com ela surgiram outras formas de quotidiano.
Obrigada pelo seu comentário. Volte sempre! :)