quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Validação


Estava mesmo em cima da hora. Estacionou o carro na praceta, debaixo de uma chuva miudinha, abriu com dificuldade o guarda-chuva que já contava com duas varetas desamparadas, segurou como pôde a mala sempre aberta e saiu. Ultrapassou a esquina e entrou por aquela porta de alumínio, baixa, subindo as escadas e sentou-se à espera. Poucos minutos depois, ele abriu a porta, sorriu-lhe o sorriso habitual e, amavelmente, convidou-a a sentar-se. Então, como se sente?
Sentou-se.

Tentou passar rapidamente em revista a sua semana, na esperança de eleger acontecimentos dignos de registo. Na verdade, não lhe ocorria nada a que pudesse reconhecer relevância; a não ser que se sobressaltava ao mais leve movimento inesperado ou ao ouvir um som brusco; que se sobressaltava no desconforto dos seus dias, no desconforto de se saber a falar para o vazio e sem eco. Bom, mas isso não significava que alguma coisa tivesse acontecido, antes pelo contrário, já que não registava nenhum acontecimento digno de nota. A não ser que reflectisse sobre o facto de ao fim de todos estes anos continuar a falar para o vazio. Talvez isso fosse um problema geracional, era-o com toda a certeza, concluiu facilmente, já dentro da conversa com ele. Ele olhava-a e aguardava pacientemente que mais ideias surgissem e, quando surgiam, perguntava com uma certa cadência Quer ajudar-me a entender isso? Queria, seguramente. E avançava confiante pela teoria do conflito de gerações, discorrendo sobre o diferente valor dado às coisas e de como os conceitos abstractos tinham um entendimento diferente do dos conceitos mais materiais. De como, na outra geração, o respeito pelo outro ou a liberdade individual perdiam terreno para as questões mais concretas, como o custo das coisas e a segurança material, por exemplo.

Deixou sair um breve olhar pela janela, de soslaio, e voltou a vasculhar na memória recente a ver se descobria dias relevantes. Novamente de soslaio, o olhar virou-se para ele, que aguardava, pacientemente. Não sei que mais lhe possa contar, confessou timidamente. Ele sorriu, também um sorriso contido, e largou, a título de achega, Costuma dizer-se que quem está mal, muda-se...

Ela pensou ter compreendido. Remexeu-se na cadeira, cruzou e descruzou as pernas que sempre teimavam em não permanecer ambas na mesma posição, e resolveu-se a mudar. Foi a sua vez de sorrir um sorriso, desta vez para si própria. Para começar, iria sair dali, para o mundo real, e largar a muleta de quem nada mais lhe trazia do que ser eco e aplauso das conclusões a que já, por si mesma, tinha chegado.

Desceu as escadas, fez o caminho de volta e deixou-se envolver pela chuva miudinha que ainda marcava o final do dia. Saiu, com a sensação de ter levado um carimbo de validação em todas as reflexões que, habitualmente, nem achava que fossem suas mas apenas do senso comum. Ligou o rádio do carro e ouviu-o cantar a velha metáfora: Estava eu quase morto no deserto, e o Porto aqui tão perto!...

6 comentários:

CENTRALINA disse...

Muito bem escrito. Este é o registo mais eficaz que tens Paula. Muito sentido e humano.

Paula Crespo disse...

Centralina,
Obrigada. É também o meu registo preferido, confesso :)

LB disse...

Ou, "hoje é o primeiro dia, do resto da minha vida"...
Quando se escreve assim, é crime tão prolongada ausência...
Bjo

Paula Crespo disse...

LB,
É sempre, não é verdade? ;)
Obrigada pelo elogio :)
Bjs

Luis Eme disse...

às vezes é preciso soltar as amarras e partir...

mesmo que esteja a cair uma chuva, ainda que miudinha...

beijinho Paula

Paula Crespo disse...

Luis Eme,
Será que por ser assim tão miudinha é que lhe chamam de "molha tolos"?!... ;)))
Para navegar é preciso soltar amarras, não é? :)