terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Doces da época e outros amargos de boca


O Natal não é uma data, é um estado de espírito. Leu. Dobrou o jornal em dois e ocorreu-lhe que gostaria de lhe dar mais corpo, a esse Natal que, pelos vistos, vive mais em espírito. Materializá-lo. Poder tocar-lhe, desvendar-lhe as formas, agarrá-lo e chamá-lo a si. Há já tantos anos que apenas o sonhava, que dele tinha saudades. Saudades de uma casa cheia, cheia de gente e de vozes, de risos e algum calor. Semicerrou os olhos para logo de seguida os abrir e fixar o tipo careca que aparentava apenas uns trinta de idade e mexia nervosamente o café. Um tipo muito vulgar, pensou, e talvez por isso desviou o olhar que percorreu um círculo em direcção ao jornal, dobrado ao meio, que repousava na mesa ao lado do prato com os restos do folhado. Seco, por sinal. Ainda com o Natal na cabeça, lembrou-se que gostava muito de azevias, principalmente das de grão, e que só costumava comer duas ou três em cada Dezembro. Apesar de gostar, o certo é que as enjoava facilmente e perdia a vontade até ao ano seguinte. Luísa tinha mão, fazia-as bem, mas desde que saiu comprava-as na pastelaria e não era a mesma coisa.

Saiu, com o jornal que continuava convenientemente dobrado debaixo do braço. Caminhou ao longo da rua, dobrou a esquina, atravessou outra rua e mais outra. Parou no semáforo para atravessar uma terceira e observou um casal com dois miúdos, um ainda criança, outro nem tanto, já adolescente, espigadote. Sorriu para dentro um sorriso pálido e novamente a ideia do Natal e do seu corpo entrou no seu pensamento, ou diria antes, no seu espírito. Não teve filhos e esse desejo esteve ausente durante muito tempo. Só chegou agora, sob a forma de vazio, um vazio acentuado a cada Dezembro, um maldito mês que no seu final se despedia sempre em tons carregados. Luísa, essa sim, sentira essa falta e talvez por isso as coisas azedaram entre eles, devagarinho, e mais tarde resolveu arejar e procurar preencher vazios, vários, noutros registos de vida.

O bolso do casaco vibrou com o toque do telefone. Atendeu. Falou uma conversa curta com o irmão. Desligou. Mais um problema resolvido - comeria as azevias em casa dele, com a cunhada e os miúdos, os sogros do irmão e uns primos do Algarve, que rondavam a mesa e o espaço em cada Dezembro e compunham a cena e aqueciam as conversas. Não seria o cenário idealizado, mas era o possível e, pensando bem, era de dar graças por ainda existir esta possibilidade, este aconchego. Agora devia ocupar-se com outros afazeres, como o que dar aos dois sobrinhos, cheios de tudo e falhos de coisa nenhuma, que agora os miúdos já nem espaço têm para desejar, de tão atafulhados que ficam nestas ocasiões. E noutras, também. Lembra-se que em criança desejou muito uma mota que demorou alguns anos a conquistar, mas hoje já não é assim. Resta saber como será amanhã, mais tarde, se já for difícil encher embrulhos bonitos, o que será das crianças, já grandes por fora, mas teimosamente pequenas por dentro… Enfim, pelo menos ele não sentiria na pele esse problema, uma vez que não tinha filhos.

Olhou para o relógio e sobressaltou-se com as horas, que o fizeram despertar para o presente. Continuou a andar pela avenida até que se deteve numa montra e o presente recuou, muitos anos. Sorriu um sorriso cúmplice, e resolveu-se a comprar uma mota que animava aquela pequena montra. Pronto, pensou, já tenho mais um problema resolvido.

18 comentários:

sagitario disse...

olá Paula,

lindo texto, pois reflete o Natal comum dos que não têm Natal.

Sabe este Natal foi para mim talvez o melhor da minha vida e não resisto a contar-lhe.
Passei a consoada num dos bairros mais carenciados de Lisboa, tenho lá familiares de familiares e sinceramente foi uma lição de vida para mim.
Crianças eram mais de 20 e outros tantos adultos, a casa estava cheia e a mesa farta, mas quando eram 10 horas da noite os miudos estavam ansiosos e cantaram cânticos de Natal até a meia-noite todos felizes pois tinham presentes para todos.
sinceramente naquela consoada havia muito amor e partilhara e foi mesmo talvez o Natal mais genuino que tiva na minha vida.

Paula Crespo disse...

Sagitário,
Esse foi concerteza um verdadeiro Natal e o seu espírito fez-se sentir. Esse cenário não faz parte do Natal do comum dos mortais; essa partilha, essa sensação que descreve de ter sido útil inscreve-se, sem dúvida, no espírito da quadra. Parabéns! :)

LB disse...

Belíssimo texto! (nada de novo, portanto...)
Este ano, contariamente ao habitual, fui almoçar fora no dia de Natal com a família toda. Surpreendeu-me a quantidade de mesas ocupadas só com uma pessoa...
Bjo

Paula Crespo disse...

LB,
Pois é, mas a acredite que a surpresa é cada vez menor...
Obrigada pelo seu comentário e votos de um Bom Ano!

http://josehspereira.blogspot.com/ disse...

Tanta solidão em expressões como estas:
“Saudades de uma casa cheia”
“um vazio acentuado”
“Luísa, essa sim, sentira essa falta”
“Não seria o cenário idealizado, mas era o possível”
O Natal acentua essa solidão e é a prova de que ninguém é feliz por decreto. Fica a ideia que temos 364 dias para sorrir e fazer sorrir os outros, o Natal não passa de uma obrigatoriedade de presentear e mimar os outros, que peca em muitos sujeitos por os fazer esquecer o resto do ano. As prendas devem ser dadas por ordem do coração e não do calendário. Este texto é uma prenda a todos os que gostam de te ler, entre eles há um que te agradece este prazer. Obrigado.

Paula Crespo disse...

José,
Verdade. E da solidão o Natal não tem culpa, não é ele que a traz, apenas a revela. Ela já lá existe. Quanto às prendas, também é verdade, só que, à semelhança do que se passa com o pobre do Natal (!!), apesar de serem obrigação, o nosso imaginário acaba por viver delas, também. Ou como as férias: se todos tiram férias em Agosto, quando não tiramos até parece que estamos desajustados. Enfim, o Homem é um animal gregário, não é assim?! ;)
Obrigada pelo tremendo elogio quanto à escrita! :)

paulofski disse...

Olá Paula

Espero que tenha passado uma noite de Consoada e um dia de Natal com uma pontinha adoçada de satisfação. Eu fui afortunado por mais um BOM NATAL, por mais uma celebração familiar.

Paula Crespo disse...

Paulofski,
Sim, foi uma Consoada agradável, também em família. E ainda bem que se sentiu afortunado, é um bom sinal :)
Um Bom 2011 para si!

BlueVelvet disse...

Que saudades de ler um dos belos textos que aqui publicas.
Vim agradecer e retribuir os teus votos de Feliz Ano Novo mas não posso deixar de comentar este texto, tão verdadeiro e tão a propósito.
Beijinhos

Paula Crespo disse...

Blue,
Obrigada :)
Bjs

S disse...

Não sou perita em palavras, talvez por isso goste tanto de ler textos alheios. Gostei do blog.

Paula Crespo disse...

SS,
... mas parece sê-lo em imagens; e uma imagem vale mais do que mil palavras, certo?!... :)
Obrigada pela visita e volte sempre.

carlos pedro disse...

O Natal acontece sempre que a amizade nos aquece... e, mesmo com as lembranças mais cinzentas, prolonga-se-nos na alma com vontades benfazejas.
Bem hajas pela partilha de emoções.
Bom Ano

Paula Crespo disse...

Carlos Pedro,
É bem verdade. Obrigada pela sua visita e volte sempre!

Rui disse...

A mota (o andar de mota de uma certa maneira, pelo menos) é também um estado de espírito - não será exactamente como o natal, mas algo igualmente bom.

Paula Crespo disse...

Rui,
Acredito que sim :)
Aqui esta mota-brinquedo pretende ser um símbolo, como se vê. Mas também é uma leitura possível a sua, já que mota/liberdade/estado de espírito de alegria...
Bem visto! ;)

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,

Muito bom, o texto, a ideia, a partilha...

Fechei a caixa de comentários do http://mariasentidos.blogspot.com/ (um dia destes reabro), mas continuo a visitar o 'blogobairro' e embora ande parca no comentar, não me esqueci de Ti nem dos outros(as)amigos(as).

um abraço e o meu sorriso de sempre :)
mariam

Paula Crespo disse...

Mariam,
Obrigada pela visita :))
Eu também tenho andado muito arredada destes circuitos e da escrita: vamos ver se aos poucos a coisa melhora ;))
Bjs