quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entrevista


Desligou o telefone com um suspiro. Seria desta?

Ao abrir a porta percebeu imediatamente que era. Na sua frente, uma mulher com cara simpática, afável, cabelo curto e lenço ao pescoço, preso com um alfinete em forma de flor. Formas quase redondas, a tender para o cheio, ar lavado e engomado. Sorriso franco.

Há oito anos que vinha do Leste. Ia e vinha, entre as saudades da terra e dos filhos e a necessidade de trabalho. Caminhava para cá, deixando no pensamento um rasto de saudade e preocupação, presos numa cidade distante de um país gelado, à direita no mapa.

Enrolava as palavras lusas e fazia um esforço por dar forma às ideias e ao que precisava de dizer. Do sorriso aberto espreitava um dente de ouro, fora de moda no lado de cá da Europa, mas que talvez falasse sobre um modo de vida de alguma forma parado no tempo. Ou pelo menos, no nosso tempo…

Limpava, engomava, e lá ia e vinha, num circuito sempre igual, ritmado e seguro, que inspirava confiança. Ia e vinha até um dia, em que anunciou a ida para tratar da mãe, doente e gasta, que esperava em silêncio do lado de lá, à direita no mapa.

Prometeu deixar outra em seu lugar – possivelmente parecida, vinda do mesmo sítio e viajante no mesmo percurso e com o mesmo destino.

Desligou o telefone com outro suspiro. Seria desta?...

14 comentários:

Graça B. disse...

A massa de que somos feitos e o lado do mapa a que pertencemos são quase sempre visíveis nos detalhes exteriores. Estas mulheres assim como enrolam as palavras vivem uma vida enrolada que, embora o possamos imaginar, só elas saberão o sofrimento que lhes causa. Ganhar a vida continua a não ser fácil para tanta gente.
Um texto sensível, perspicaz e muito bem escrito.

Bjs

CPrice disse...

o que faríamos no seu lugar? teríamos a coragem necessária? ..

(já tinha saudades tuas .. nada de mais ausências destas menina!) :)

BJ

Paula Crespo disse...

Graça,
Pois não é fácil... São os "novos lisboetas", como bem se viu no documentário que andou por aí há poucos anos.
Agradeço a apreciação quanto ao texto... :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Once,
Possivelmente... não...
:)Fico feliz... ;)
Bjs

CNS disse...

Excelente retrato.


bjs

Paula Crespo disse...

CNS,
Obrigada :)
Bjs

Luis Eme disse...

é um retrato do mundo dos "saltimbancos" que sonham mudar de vida...

bjs Paula

Flip disse...

a incereza conexa com uma intranquilidade aparente na vida de uma rapariga de leste...a vida difícil que eles devem enfrentar para ganhar a vida, não é fácil, um tema com pano para mangas Paulinha...está carregada de faltas :-)))

Paula Crespo disse...

Luis Eme,
Ou como cantam os Xutos e os Oioai, em Pertencer:

O meu nome é João e vivo ao teu lado
O meu nome é Yuri do continente gelado
O meu numero é zero nesta democracia
Deixa-me pertencer, eu quero pertencer-te...
Bjs

Paula Crespo disse...

Flip,
Oopss, eu sei... será que já estou chumbada?... ;)
Bjs

paulofski disse...

Histórias de malas de cartão nos tempods de hoje. E que se repetem as despedidas: lá fora a lutar pela vida.

Bjs

Oliver Pickwick disse...

Humm... apareceu a Margarida!
Uma história tocante e reveladora do lado perverso da resignação.
Bom "vê-la" de novo!
Um beijo!

Paula Crespo disse...

Paulofski,
As despedidas e o lutar pela vida andam de mãos dadas e viajam sempre em malas de cartão, não é mesmo? ;)Ontem, hoje...
Bjo

Paula Crespo disse...

Oliver,
:):):)
Bom voltar... ;)
Bjo