terça-feira, 4 de novembro de 2008

A rua dentro de quatro paredes

Estão dentro da sala de aula mas, na realidade, não estão. Os seus pensamentos vagueiam, a sua atenção é escassa e perde-se por outros atalhos que não os que conduzem ao professor e à matéria dada. Qualquer pormenor capta os seus olhares, produz risos, provoca conversas que muitas vezes, ou quase sempre, descambam para a insolência ou mesmo a agressão. Reagem assim porque lhes é muito difícil encontrar sentido nas palavras que ali ouvem, soando-lhes estranhas, antiquadas, inúteis para as suas necessidades e absolutamente estrangeiras para o seu mundo, mundo que é feito maioritariamente de rua, de onde conhecem as leis porque se orientam.

Os seus pais vieram dos quatro cantos do mundo, de todas as etnias que a França perfilhou dos longínquos territórios de outrora, e dos de hoje, de uma França perdida nos territórios ultramarinos. Vivem uma certa perturbação identitária, sem saberem bem para que lado pender, dividindo-se entre uma identidade europeia, branca, e as suas raízes, negras, mestiças ou outras, bem vivas tanto no rosto como na cultura doméstica. Mas também os há franceses de há muitas gerações, sendo que em comum carregam consigo o peso da bolsa vazia e das dificuldades de toda a ordem que os pais lhes deixam de herança.

Tomemos, então, um grupo de jovens professores, empenhados, esforçados em captar essa atenção dispersa. Tarefa difícil mas necessária, porque transmitir conhecimentos e definir regras são eixos fundamentais para viver em sociedade. Mas qual sociedade? Para que querem estes adolescentes gastar o seu precioso tempo, normalmente passado em pouco mais do que vadiar pela rua, divertir-se ou medir forças nos gangs, namoriscar e passar o tempo no shopping, acertando o olhar na montra da bugiganga barata e das últimas americanices em versão t’shirt? Sim, para que precisam eles de saber como conjugar o presente do conjuntivo, se o infinitivo lhes dá e sobra para o gasto?

Trata-se pois de dois mundos diferentes, antagónicos até, separados por tudo e mais alguma coisa, não só o salário ao fim do mês ou a falta dele e pelas suas consequências, mas por muito mais do que isso. Os tempos mudaram e deram origem a novas realidades sociais. Antigamente, o ensino não era para todos e muitos dos que não beneficiavam dele passaram pelo menos aos filhos a mensagem da importância de a ele ter acesso, para ascensão social, para alcançar melhores condições de vida. Era valorizado, portanto. Hoje talvez o seja menos. Talvez se pense que a vida tem outros pressupostos que não passam necessariamente pela escola; talvez haja quem pense que há outras formas de angariar dinheiro e que este tudo paga e tudo compra. Talvez hajam outros ídolos a venerar, que já não passam por ter mais conhecimento ou mais cultura. Ou será porque o dia-a-dia dos pais – e designadamente das mães – está de tal forma sobrecarregado que não lhes sobra tempo nem coragem para dar mais atenção aos filhos. Ou talvez porque os próprios pais não podem dar aquilo que não têm.

São estas questões que estão subjacentes neste filme, com o rosto de documentário. A Turma (Entre les Murs), de Laurent Cantet, é um filme sobre educação. E, por isso mesmo, é um filme muito abrangente, sobre a sociedade. Filmado numa escola pública presumo que dos subúrbios de Paris, poderia tê-lo sido em Lisboa ou em qualquer outro grande centro urbano, pois os problemas são transversais e cada vez menos conhecem fronteiras. E não se circunscrevem a questões raciais, antes radicam na pobreza e nas más condições socioeconómicas.

Não sei qual é a solução para chamar a atenção dos alunos, nem para os aproximar da escola. Mas para aqueles que advogam um maior facilitismo na abordagem escolar, ou um trazer para dentro das quatro paredes da sala de aula a rua, numa tentativa de aproximar linguagens e códigos, lembro só que não é nivelando por baixo que se obterão melhores resultados. Acho eu, que não sou nem professora, nem pedagoga... Apenas interessada.

23 comentários:

Vera disse...

Hoje também pus um post no meu blogue sobre este livro/filme. Também não sou professora ou pedagoga. Sou apenas Mãe de 4 filhos e muito interessada e preocupada com a Comunidade onde nos inserimos. Gostava de ser capaz de ajudar a mudar, mas não sinto facilidade, não sinto vontade, e isso entristece-me.
Tenho que comprar o livro e ver o filme :-)

Paula Crespo disse...

Vekiki,
Acho que é um problema tão abrangente que ninguém lhe poderá ficar indiferente.
Obrigada pela sua visita!

BlueVelvet disse...

Já é o 5º blog por onde passo que tem um post sobre este filme.
Convenceu-me. Lá terei que o ir ver.
Beijinhos

Paula Crespo disse...

Bluevelvet,
Acho que vale a pena, pela reflexão.
Bjs

CPrice disse...

interessada e dona de uma escrita brilhante Paula, uma escrita que cativa e descreve sem deixar a opinião por mãos alheias ..
Não é nivelando por baixo, de facto, concordo eu que também não sou professora :)

Gostei de ler *

Flip disse...

Paula,
um dilema este, o desta juventude desinteressada pelos valores da sociedade estabelecida. Na minha modesta opinião, há que ouvi-los e conjugar com eles a solução, assim se satisfarão os interesses da própria sociedade (que os insere no seu seio) e dos jovens (que querem aderir, não sabem é como...). Nada como um estímulo...
:)
(bom tema, dá pano para mangas)

Paula Crespo disse...

Once,
Vindo de si, é um elogio que me dá muita satisfação :)
Uma boa semana!

Paula Crespo disse...

Flip,
Concordo que há que ouvi-los, claro, e tentar estabelecer pontes que os aproximem da sociedade e esta deles. O que não significa necessariamente baixar o nível dos conteúdos escolares a tal ponto que se esvaziem, só para que o diálogo se torne mais fácil e para mascarar positivamente os níveis de sucesso escolar. O problema está em encontrar esse ponto de equilíbrio...

Paula Crespo disse...

Lb,
Pois, talvez, se bem que para mim a questão não é exactamente essa. Parece-me um bocadinho mais complicado...
Sempre elogioso! :)
Bjs

paulofski disse...

Não vi o filme, no entanto enquanto circulava de carro escutei alguns comentários sobre ele. As diferenças sociais, culturais e educacionais são bem realçadas, espelho do que são as novas gerações de jovens franceses, os relacionamentos entre os locais e os filhos de emigrantes, as questões multi-étnicas e as dificuldades de adaptação.

Luis Eme disse...

claro que não é com facilitismos que se lá vai.

mas este país é todo ele a brincar, desde as novas oportunidades, aos banqueiros que se divertem com o nosso dinheiro...

bjs Paula

Anónimo disse...

Tive a sorte de o ver em Cannes,mas creio que vou ver outra vez, apesar de não ser professor, poque interessa a toda a gente, já que se espraia muito para além da vida escolar

A. Jorge disse...

Gostei de ler este post que nos alerta para algo afinal nós já conhecemos e, mais tarde ou mais cedo discutimos com alguém.
Se ao menos certas pessoas com poder para modificar certas coisa om lessem!... Será que se enxergavam?

Um beijo

Jorge

Anónimo disse...

ola


gosto do seu blogue e por isso passarei por cá mais vezes.

Boa semana

http://arte-e-ponto.blogspot.com

Alberto Oliveira disse...

... um tema escaldante porque está em jogo o futuro do(s) país(ses). No caso português, as dificuldades em encontrar soluções são ainda maiores, uma vez que a sociedade portuguesa se encontra completamente dividida (para não variar de há largos anos a esta parte) que vão desde reformas governamentais inócuas e de "cada côr seu paladar" acrescidas do velhinho "quero posso e mando!", interesses de classe e uma criançada que "sabe perfeitamente o quer antes de tempo e sem ter (a larga maioria) possibilidades de o possuir. Os tempos mudaram, a matriz familiar também e não houve a procupação de se fazerem leituras a médio prazo, depois da revolução e em relação ao futuro próximo... que são os dias de hoje. Por isso, se contemporiza e se "facilitam" exames e acesso ao ensino superior. Em nome do ranking europeu...
Estamos bem arranjados.

Paula Crespo disse...

Paulofski,
No caso concreto da França talvez esta situação se torne mais visível, dada a verdadeira manta de retalhos étnica de que é composta. Mas o problema não se circunscreve unicamente aos emigrantes; ele é bem mais transversal do que isso.

Paula Crespo disse...

Luís Eme,
Se bem que por cá as decisões nos soem normalmente "estranhas", o problema não é português, mas sim geral, como foca este filme...
Bjs

Paula Crespo disse...

Carlos Oliveira,
Em Cannes? Sorte mesmo! :)
Sim, é uma questão demasiado abrangente, como abrangente é tudo o que se relaciona com educação. Ela é a base de tudo o resto.

Paula Crespo disse...

A. Jorge,
E julga que elas não sabem?! Não penso ter dito nada de novo... ;)
Bjs

Paula Crespo disse...

Carlos Silva e Cunha,
Obrigada pelo elogio. Espero vê-lo por cá mais vezes! :)
Boa semana!

Paula Crespo disse...

Legivel,
Pois, é o problema de falta de planeamento a longo prazo. Tomam-se, por vezes, medidas mais de carácter conjuntural, para tentar resolver problemas pontuais, e não medidas estruturais. Mas isso acontece em todas as áreas, infelizmente...

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
a ver! sem dúvida... tenho um filhote com 13! (será apropriado levá-lo?)

Obrigada p'la divulgação.

bom resto de semana
um abraço e um :)

mariam

Paula Crespo disse...

Mariam,
Penso que sim. Que mais não seja para ele perceber o que não se deve fazer e tentar explicar-lhe o contexto em que estas situações surgem...
Bjs