quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Alegoria da vírgula e do ponto

(imagem da Internet)

Corriam os dedos no teclado, soltos, apressados, estouvados até. Corriam velozes, que o tempo passa depressa e a manhã já soa, pianinho, num sussurro, até que se lhe adivinha a voz ganhando corpo, escurecendo, crescendo para o dia, firme, madura.
Corriam os dedos, semeando letrinhas bambas, amedrontadas, daquelas que ninguém dá nada por elas, nadinha mesmo. Trémulas, agarram-se umas às outras até que, ganhando coragem, seguem de peito feito e nariz empinado, num corpo de palavras que contam histórias.


A vírgula entrou por ali dentro, acompanhada de manas e primas, todas iguais, todas sem jeito, borbulhentas e rechonchudas. Instalaram-se, sentaram-se bem perto umas das outras, numa algazarra de galinheiro, ora cochichando, ora elevando a voz, estridente e desarticulada. Risinhos rosa choque ecoavam por todo o texto, nervosos, num sem jeito imaturo de quem não sabe bem ao que veio.
– “Porque viemos, prima?”, indaga a mais nova, de olhos abertos, brancos, sem fito.
- “Ora, Tininha”, responde a outra, “viemos ao costume: semear a confusão neste reino de letras. É a nossa voz, as nossas razões que queremos fazer valer. Estamos fartas que nos tomem por tolas, por inúteis”.
E continuou chilreando em redor, atirando ao ar pequenas razões, “por isto, por aquilo”, na certeza de reinar sem medo num mundo de letras trémulas.


“Puro engano de quem não sabe onde pisa”, deu por si a pensar o ponto, observando-as do fundo da sala. Velho matreiro, tarimbeiro de muitas lides no teclado e no papel, onde outrora a tinta era sua companheira. “Mudam-se os tempos, é certo, mas haja dignidade!”, decide-se ele por esta máxima, confiante no seu papel de regulador de frases perdidas. “Se pensam que me reformam estão enganadas”, continua.
E sai, altivo, compassado, ditando as regras e impondo-se naquela desordem de letras sem rumo. Batendo com a porta e pondo os pontos nos iis.

21 comentários:

CPrice disse...

que coisa deliciosa Paula .. é para continuares certo? :)

**

Vera disse...

Lindo ;)

mariam [Maria Martins] disse...

Paula,
li sorridente este belo texto!
quanta imaginação... parabéns.

venha agora o próximo, talvez do protesto das letrinhas que ficarão banidas p'lo acordo ortográfico...!

boa semana
um sorriso :)
mariam

ah!as virgulas devem estar irritadíssimas com «J.Saramago» !rsrs

A. Jorge disse...

Está um texto maravilhoso e com um sentido de humor fantástico.
Até o nome da vírgula foi escolhido a dedo. "Tininha"! LOLLOL

Um beijo

Jorge

Paula Crespo disse...

Once,
Se a imaginação der para tanto... :)
Bjs

Paula Crespo disse...

Vekiki,
:)

Paula Crespo disse...

Mariam,
Olha que me estás a dar ideias... ;)
Sim, certamente! Mas mais ainda o ponto final, tão ausente da sua escrita... ;)
Bjs

Paula Crespo disse...

A. Jorge,
Tininha aplica-se bem, não é?!...;)
Bjs

Anónimo disse...

Tenho por cá passado... e leio-a sempre com imenso interesse e gosto.
Nunca comentei mas hoje, este texto delicioso faz-me quebrar a regra e utilizar a excepção.
É magnífico, original, divertido e até ritmado. Gostei imenso!
Espero que continue a brindar-nos com a sua escrita!

Um beijinho

Flip disse...

Paula
adorei, um ponto, velho matreiro, tarimbeiro, altivo, sim, porque um ponto é um ponto, nada de deixar cair na berma a sua posição, é ele que dá o toque final em qualquer história
:-)

paulofski disse...

E eu aqui a pensar que o ponto não vivia sem a vírgula!

Adorei o texto Paula

Paula Crespo disse...

J.A.,
Tantos adjectivos simpáticos! :)
Eu é que fico reconhecida pela sua passagem por este blogue.
Bem-haja.
Bjs

Paula Crespo disse...

Flip,
Interpretou bem o que se pretende com este ponto. Está bem traçado o perfil! ;);)
Bjs

Paula Crespo disse...

LB,
Ah, também não lhe escapou a Tininha! Curioso, revelou-se uma das figuras principais desta pequena história... ;)
Bjo

Paula Crespo disse...

Paulofski,
Têm dias!... ;);)
Agradecida... :)

Anónimo disse...

Texto magnífico, uma ode bem pontuada a regras espezinhadas pela torrente apressada que escorre pela blogosfera. Nessa vertigem apressada, também eu maltrato as vírgulas. Tantas vezes, que não sei como ainda me perdoam!
Como diz a miriam, venham mais textos destes para aplaudirmos. De pé!

Paula Crespo disse...

Carlos,
Habitualmente, elas são maltratadas por excesso e por morarem fora de sítio... ;)
Obrigada pelo aplauso! :)

BlueVelvet disse...

Eu não digo?
Passo para este o comentário lá de cima.
Só que a este ainda acrescentáste o humor.
Giríssimo.
Veludinhos azuis

Paula Crespo disse...

Bluevelvet,
Humor? Ehehehe!! :)
Bjs e bom fim-de-semana!

Oliver Pickwick disse...

"...a ela peço que por me fazer simgular merçee man de vijnr da ylha de sam thomeee jorje dosoiro meu jenro..."

Este é um trecho da carta escrita por Caminha ao rei de Portugal, em 1500.
Como vê, a língua é um organismo vivo, evolui com o tempo.
O acordo ratificado pelos países lusófonos é apenas uma pequena reforma, não descaracteriza a língua, porém, procura torná-la mais atraente e de melhor aprendizado.
Aqui no Brasil, fomos mais radicais, promovemos diversas reformas nos últimos anos e, nem por isso a língua perdeu em sonoridade, técnica e estilo. De certa forma, continuamos "falando latim" ;)

Pra você, uma poesia do meu poeta brasileiro preferido, Olavo Bilac, nascido em 1865.

LÍNGUA PORTUGUESA

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amote assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Um beijo!

Paula Crespo disse...

Oliver,
Já sabia que você é um acérrimo defensor deste Acordo! :)
Um grande bem-haja pelo poema que é lindíssimo! Apesar das "dores" sentidas pelo poeta, quanto a este falar "desconhecido e obscuro", "rude e doloroso", mas que ele tão bem combina com outros predicados, chamando-lhe "saudade e ternura". Talvez a lusofonia, com "o teu viço agreste e o teu aroma / De virgens selvas e de oceano largo!" O tal Mar Português espelhado na Língua...
Beijo!