domingo, 16 de dezembro de 2007

Por portas e travessas...

É Inverno e faz frio. Um frio cinzento, que contrasta com a luz branca e intensa que abençoa esta cidade. Estico o caminho, desvio-me, e dou por mim a percorrer, preguiçosamente, ruas de um bairro que já foi o meu: prédios de três andares, sóbrios - até na sua decadência de entes mal conservados -, de traçado simples mas funcional. Filhos da reforma de Pombal, Homem com uma visão de futuro e um verdadeiro sentido de modernidade, que se reflectiu muito para além do urbanismo. Estadista iluminado que outros obscureceram, por ignorância, mesquinhez, má-fé ou conveniência. Para a História parece ter ficado apenas a fama de um carácter cruel e impiedoso, em detrimento de valores mais elevados, que lhe eram caros e dos quais nós somos beneficiários.

Sou uma urbanita. Vem-me sempre à memória uma frase que nunca esqueci, de um filme visto há muito e cujo título não recordo, em que alguém, perguntando a outro alguém como gostava ele do café, este respondia: "Na cidade"...

Nascida e criada em Lisboa, gosto de me perder nela, percorrer os seus bairros tão diferenciados, as suas ruas, os becos esconsos, esquecidos por detrás das avenidas. São ruas mais ou menos estreitas, com casas cheias de estórias, em que me cruzo com pormenores que vou, aos poucos, (re)descobrindo. Relembro a velha mercearia de esquina do Sr. João, um minhoto anafado e bonacheirão com uma família a condizer, onde, para além do feijão ou do arroz, a vizinhança se abastecia das chamadas telefónicas para a terrinha, que nos finais de 60 permanecia longe, à espera do Verão. Ou a capelista - estranho nome para uma lojinha de linhas e botões, mas em que também as meninas da escola iam comprar lápis de cor... Relembro, enfim, as velhas ruas pacatas e soalheiras e o pequeno jardim da infância, onde se brincava aos "cinco cantinhos" e à "macaca".

Mas para além da revisitação dos velhos lugares, gosto também de descobrir os pequenos pormenores que normalmente nos escapam: um cunhal de um prédio, uma janela, um pátio... Lisboa é particularmente pródiga em dissimular pequenas pérolas que, no dia-a-dia, nos passam despercebidas. É preciso abrandar o passo e apurar a vista, ver para além de olhar e, sobretudo, saborear, com infinito prazer, os pequenos nadas desta cidade antiga.

6 comentários:

Gi disse...

Revejo-me em cada uma das palavras que escreves. Felizmente, não tanto como gostaria, tenho tido tempo para esse 2º olhar. Essas pérolas não me passam despercebidas. É muitas vezes nessas ruas onde me peco que afinal me encontro. Comigo e com o passado.

Um beijinho


Já te acrescentei aos links para se tornar mais fácil a visita.Só falta ordenar :)

Paula Crespo disse...

Gi,
Já vi que acrescentaste o link, obrigada! Já por lá passei hoje mesmo...
Bjs

Luís Galego disse...

Lisboa é particularmente pródiga em dissimular pequenas pérolas

este é o tipo de narrativa que m agrada, ou pelo menos um dos meus preferidos. o quotidiano contado com ternura. o post que faltava ou o primeiro de muitos.

Paula Crespo disse...

Luís,
É muito querido da tua parte... "padrinho"!...
Bjs

Leonor disse...

Andar a pé por Lisboa e olhar com olhos de ver é uma das actividades que me dá prazer. Nasci e vivi até tarde num bairro de Lisboa perto daquele que descreves onde conheciamos os nossos vizinhos todos e ainda hoje moro noutro bairro de lisboa onde as relaçºoes de vizinhança ainda se mantêm. É agradável e vai sendo raro.
Para além disso, andar pela cidade traz-nos sempre (ou pode trazer) um portugal desconhecido. Basta estarmos atentos.
Foi bom ler o teu texto
bsj

Paula Crespo disse...

Leonor,
Tens razão quando referes esse Portugal desconhecido. Ele existe e está muito mais próximo de nós do que imaginamos; basta que nos desviemos um pouco das rotas principais para o descobrirmos.
bjs