quinta-feira, 15 de abril de 2010

Legenda de um olhar...

O tempo tinha-o de sobra, apesar do pouco que lhe restava.
Cada ruga, cada traço, carregava anos de dias pesados, duros de trabalho.
Levantou-se cedo desde o berço, um caixotinho de tábuas perto da braseira. Cresceu e viveu acartando lenha, tratando da criação. Criou outra também, um rancho de seis filhos, quase todos ausentes agora, tirando a Laurinda que tinha ficado por perto e que agora ganhava a vida atrás do balcão, desfiando tecido a metro para uma freguesia pouco exigente e ainda menos compradora. Para além disso cuidava dela. Todos os dias lhe levava o almoço, lhe fazia a cama, lhe arrumava a casa, que Bárbara já não se endireitava como antes.

E esta ficava a olhá-la, quieta e silenciosa. Olhava-a e reconhecia os velhos gestos, os de sempre, que tinha passado à filha na rotina da lida da casa. Olhava-a num sentimento de missão cumprida, de ciclo fechado. Olhava-a na certeza e com a segurança ganhas pelo tempo. Do passado e do que lhe restava.

12 comentários:

paulofski disse...

Um texto lindo e cheio de portugalidade, como linda é a sabedoria da sua idade, do seu rosto com as marcas da vida. E os meus olhos manifestaram-se e deixaram escapar as saudades que sinto das minhas avós.

Luís Galego disse...

uma realidade que comove e que passa sem pedir licença...

Paula Crespo disse...

Paulofski,
Da portugalidade e não só: dos países do Sul também, com uma tradição ainda recente e vincada de ruralidade. Daí a memória das avós, comum a muitos de nós.

Paula Crespo disse...

Luís,
As realidades impõem-se e normalmente não se "dignam" a pedir licença... ;);)

JHPereira disse...

Se este texto fosse dado a um pintor, para que ele o ilustrasse, seguramente que ele pintaria aquele retrato. Parabens Paula.

Paula Crespo disse...

José,
Isso é um enorme elogio... :):)
Bem-hajas!!

Luis Eme disse...

a Bárbara ainda tem a Laurinda, o que vai acontecendo cada vez menos.

é mais fácil e prático deixar os velhos num lar...

bjs Paula

Paula Crespo disse...

Luis Eme,
É o sinal dos tempos e dos contextos (rural / urbano). A verdade é que a maior parte das pessoas não tem grande hipótese de manter os seus velhos em casa, sozinhos, uma vez que tem de ir trabalhar, etc. Por outro lado, tudo isso fez com que haja cada vez menos disponibilidade, até mental, para a integração dos idosos no espaço familiar e de comunidade. Isto é triste e deve de ser mudado, obviamente, mas acho que há vários factores a contribuir para este estado de coisas. É um tema que advém de muitos outras realidades. De todas, mesmo. Ele próprio não vive sozinho.

CNS disse...

São mulheres reais como estas que fazem as boas estórias.

Paula Crespo disse...

CNS,
Sim, figuras com conteúdo...

carlos pedro disse...

Imagens que, só por si, nos fazem olhar a vida de uma forma diferente.
Nos ajudam a crescer.
beijinho

Paula Crespo disse...

Carlos Pedro,
Obrigada pela visita. Volte sempre!