Viajavam de Turim para Milão. Dois italianos, de pele e cabelo brancos e olhos claros. Um homem, outro mulher. Viajavam, seguiam em frente pelas suas vidas. Viajavam embalados pelo ritmo monocórdico do comboio e seguiam felizes, tranquilos.
Ela encostava-se-lhe ao ombro, aconchegava-se. Tinha um semblante de avozinha, calmo, sereno, aninhada que estava como um gato, aceitando a protecção desse encosto. Ele, igualmente feliz naquela serenidade da partilha, avançava pausadamente na conversa, de forma tão pausada que me era permitido entrar por ela dentro sem que a língua estranha erguesse qualquer barreira. Completamente clara e transparente, como se da minha se tratasse.
Ele ia-lhe contando o que se vai passando pelo Mundo, esse mundo endiabrado e confuso. Explicava-lhe as notícias, desdobrando-lhe as ideias de modo a que ela as compreendesse. Ela, numa espécie de torpor morno e adocicado, lá ia ouvindo, aparentando um interesse muito moderado, embalada pela voz dele que, essa sim, era o seu presente e a sua realidade e aquilo que lhe aquecia o espírito. Ele oferecia-lhe, ainda, pequenos nadas da sua vida passada: “este relógio que a minha mulher me ofereceu…” ou ainda “quando fiz aquele passeio na montanha…” Momentos que decerto ela não partilhou, mas que vive agora através do som daquelas palavras e que imagina, compõe cenários, acrescenta tons, cria enquadramentos. Tenta compreender.
Atrevi-me a traçar o perfil daqueles dois seres felizes que viajavam à minha frente e que durante duas horas partilharam comigo um momento das suas vidas. Fui uma personagem passiva e silenciosa, que os fitava e inevitavelmente ouvia. Não seriam um casal, daqueles com papel passado e registo oficial; antes seriam dois namorados. Antigos ou recentes não o adivinhei, mas de certeza que namorados seriam, pois não sofriam do pó do tempo e do desgaste que o quotidiano deixa nas longas vidas em comum. Pelo contrário, viviam momentos de ternura, dos tais que a tradição não nos habituou a testemunhar em pares desta idade. A muito custo, desviava de tempos a tempos o meu olhar comprometido desta felicidade sénior, e um sentimento de pequena inveja, o desejo do também quero, ia crescendo dentro de mim.
Resta a esperança de que o sorriso é possível numa qualquer idade. Will you still need me, will you still feed me, when I’m sixty-four?...
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
When I'm sixty-four...
Imagem tirada daqui
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22 comentários:
Esta é a verdadeira viagem dos sonhos de qualquer um.Só falta o horário para apanhar este comboio. Se o souberes,avisa.Parabens mais uma vez pela inspiração.Muito bonito.
José,
O horário do comboio não creio que esteja afixado. Pelo menos em local público e visível. Temos que esperar para ver a luz ao fundo do túnel...
Bem-hajas pelo elogio! ;)
Gostei, Paula.
Foi um prazer ler a sua história. Faz muito tempo que não ando de comboio, que chamamos de trem aqui no Brasil, mas é bem possível imaginar essa viagem, esses dois apaixonados, como se estivessem fora do tempo. Talvez o amor seja mesmo algo fora do tempo.
Mal de quem perde o sorriso e a capacidade de sonhar...
Carlos,
É preciso sonhar para nos mantermos acordados. E de pé...
José Carlos,
Fora do tempo ou intemporal? Seja como for, o cenário do comboio era perfeito... ;)
.. e eu também.
Muito terno este teu relato Paula .. bem de acordo com o sentimento que o casal te inspirou *
Kiss
Cat,
A cena era sem dúvida terna, calma e transpirava harmonia. Um doce...
Bjs
Belissimo texto deixando-nos antever que a felicidade pode estar em qualquer lugar sem hora marcada. Foi um privilégio ter descoberto este espaço.
Beijinho
O aconchego do tempo...
Lindo!
Anda-se a escrever cada vez melhor neste cantinho.
E fica a pergunta, para ti, para mim, para nós: will you still need me when I'm sixty four?
Beijinhos
APC,
Obrigada pela sua visita e volte sempre! :)
Bjs
Assistir a viagens assim é um privilégio. A partilha de sensações, a confiança e a fantasia passam tão perto e nós que seguimos tão distraídos nem reparamos em tamanha magia. Mas tu tiveste esse privilégio e presenciaste o amor que habilmente te sorriu para o poderes contar.
esta é uma viagem de afectos muito bem planeada. a face a isto, o que importa o resto? gostei muito.
Paulofski,
Sim, foi um testemunho muito interessante e agradável de presenciar.
Blue,
Thanks!! :)
Essa é uma boa questão. Bora trabalhar para isso?... ;) eheheh!
Bjs
CNS,
Sim, a sensação era muito aconchegante...
Luís,
A viagem deles? Não sei, talvez dependa de quanto tempo tiveram eles para a planear ou se é recente. Seja como for, concordo contigo: planeadas estas coisas resultam muito melhor!... ;)
Bjs
Na verdade a perspectiva da "melhor idade", como dizem, não me assusta. Todavia, após a leitura do seu relato enfrentarei com mais desenvoltura esta fase ainda distante.
Parabéns pelo seu "olho que tudo vê". :)
Um beijo!
Oliver,
Ena, ena, fico feliz por ter contribuído para uma maior desenvoltura, como lhe chama, da sua parte!! ;);) Há que ter esperança...!
Acho graça ao "olho que tudo vê"... quem me dera, Oiver! :)
Bjs
Esse medo global da mudança provável e indesejada. Investida a crédito cego no último amor...por ser mesmo o último. E a memória descola-se de todo o saber do passado, e deixa-se planar, suave e silenciosa, a abraçar o momento.
Também quero a mão na mão mesmo enrugadas e inseguras no aconchego de um cobertor quente e um alpendre com vista para o lago... se ela quiser eu vou.
Abraço
Estive ausente mas vou voltar mais vezes.
Miguel
Mika,
Todos querem :)
Volte sempre!
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