Maria, jovem casadoira de uma família de seis rebentos. Antero, jovem igualmente casadoiro e promissor, galante e galado. Ambos respiram o ar da mesma vila do interior, um ar que percorria os anos cinquenta do século anterior. Tempos passados.
Maria e Antero trocam olhares e suspiros e sonham sonhos que guardam para si. Aos poucos, esses mesmos sonhos vão-se tornando públicos e aceites por ambas as famílias, a dos seis rebentos e a outra, da qual não há memória de quantos ramos teria.
Antero, o jovem galante e promissor, atreveu-se a sair da redoma daquela vila do interior e arriscar-se até outra vila do litoral, em negócios que também fariam certamente parte dos seus sonhos, sonhos de alcançar um bem-estar maior, um estatuto maior, ser dono e patrão e poder regressar à vila do interior e resgatar Maria para ser sua dona e patroa e.
O tempo foi passando e os sonhos de Maria e Antero registavam-se em cartas, muitas, trocadas num vaivém lento entre o interior e o litoral, um vaivém curto, já que estreito é também o país.
O tempo foi passando e Antero aventura-se por outros territórios, descuida-se, distrai-se, retarda-se no seu sonho maior de resgatar Maria e, sem aviso nem querer, surge uma nova realidade na sua vida, uma nova vida, pequena, que chora e mama, de uma outra mãe que não a tão amada.
A notícia segue o seu curso no vaivém lento, desta vez em sentido único, do litoral para o interior. Aí chegou e sepultou-se. Caiu como um petardo, provocando estragos irreparáveis. Entre lágrimas e desilusões, soa a sentença da mater família, uma mãe pequena e austera, dura, talhada pela vida agreste de ter de dar rumo sozinha aos seis rebentos por si gerados. “Ele que pague a quem deve!” Eis o dedo acusador, a profecia maldita, o corte abrupto dos sonhos de Maria e Antero. Ele tinha viciado as regras do jogo, as mesmas que ditavam um comportamento vincado e irrepreensível e outras duras regras impunham que o seu vício fosse limpo pela assinatura de um contrato de casamento com aquela que não dormia nos seus sonhos, mas que lhe tinha dado esta nova pequena vida que chorava e mamava e teimava em crescer. E assim se reporia a verdade dos factos e se tapariam as bocas do mundo.
Sentença cumprida. Ele permanece no litoral, cresce no seu sonho de patrão e mingua no seu sonho de amor. Adapta-se, talvez. Ajusta-se. Sempre que encontra um familiar dela, por mais afastado que seja, conduz a conversa com um brilho nos olhos e pergunta por novidades. “Está bem? É feliz?”. Feliz não foi, arrecadada mais tarde por outro, viúvo e instalado na vida. Arrumou-se, como se usava dizer à época.
Arrumou o sonho e fechou-se dentro de casa. Deixou de ser, antes mesmo de ter conseguido sê-lo. Afável, doce e laboriosa, viu chegarem os cabelos brancos e abalar-se-lhe a voz. Morreu há muito, de leque na mão, numa cama de hospital. Com falta de ar. Teria feito quase cem anos, no dia das castanhas.


Espectáculo Final da Escola de Dança do Conservatório Nacional
Teatro Camões
2 Jul: 21h, 3 Jul: 16h, 21h, 4 Jul: 16h
Curtas 2010 - II Mostra de Teatro de Peças de Curta Duração
Traseiras do Mercado da Ribeira, Lisboa
Até 4 de Julho
XI Grande Noite de Ballet Flamenco
Teatro Tivoli
10 de Julho, 21h30


4 comentários:
sonhos por cumprir .. não há sentença mais terrível.
(adorei)
Beijinho *
Cat,
Verdade, principalmente quando o cumprimento dessa sentença é balizada pelo medo.
Bem-hajas pelo elogio :)
Bjs
Excelente!
Nada pior que os "What If's" da vida.
Bjs
Blue,
Os "what if's" existem sempre. Tudo depende do seu peso e do seu protagonismo...
Bjs
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