segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Oxalá

Imagem tirada daqui

Nesta época de Gingle Bells, cada vez com menos espírito e mais matéria, principalmente da que enche as bancas das lojas sempre iguais, aguardo paciente que o espírito desça e me ilumine; e o pior é que ele, cada ano que passa, tarda em descer.

De tudo o que se tem inventado sobre esta época e sobre o dito espírito, recordo a propósito uma troca de ideias com alguém que me citava outro alguém que, recentemente, tinha proferido umas curiosas palavras:

O Natal não é quando um homem quiser. Ele acontece quando alguém nos quer.

Fiquei a magicar naquela frase, que foi tomando forma até se me provar ser verdadeira. Ou, melhor dizendo, ser um fim em si mesma, um objectivo. Se ele (Natal)é magia, então não basta pensarmos que conduzimos e lideramos e que tudo acontece por nossa exclusiva iniciativa. Ou melhor, a magia estará na reciprocidade: depende do que o Outro vê em nós o que, por sua vez, depende daquilo que nós lhe daremos a ver.

Isto pode parecer meio embrulhado. A culpa deve de ser do excesso de açúcar no cérebro, certamente, fruto desta época… Mas numa altura em que se fazem os tradicionais votos de mudança, à vista de um novo ano que nos bate à porta, talvez o melhor voto seja que consigamos ser capazes de aproveitar as oportunidades que ele nos trará e reconhecer nos pequenos nadas a possibilidade de sermos felizes.

Oxalá.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Raios de sol

Imagem daqui


Nunca tinha cá vindo, apesar de já ter ouvido falar dele. Disse.

Terminaram o cigarro à porta e entraram. Escolhidos os prazeres que se seguiriam, fizeram o tempo render, entre garfadas e goles de tinto. O frio de Dezembro deu lugar a um calor servido na travessa e na conversa. De pequenas estórias e outras divagações, das memórias a outros nadas, a partilha marcou presença, no riso e no trocadilho que só eles entendem. Como se chamava o post?, pergunta. Disseste?..., responde. Códigos de um universo restrito que surgem em círculo, na tontura de um tagarelar redondo. E mais risos.

É uma sensação morna de aconchego. Sonha-se a parceria, assente nesta base de entendimento. Depois de um inverno interior que havia começado precocemente sabia bem uma tarde ensolarada. Sol de pouca dura, adivinhava-se, que a maré não andava propícia. Mas, e ainda assim, valia a pena saboreá-la. Lembrou-se de um registo antigo que corroborava esta ideia, espelhada numa afirmação de Mick Jagger publicada o ano passado numa revista da especialidade: Não olho para as nuvens de amanhã através do sol de hoje. Ele há gente inteligente! Quando for grande também quero ser assim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Quotidianos do cor-de-rosa

Imagem tirada daqui


Saí para comprar bolos e regressei com um candeeiro na mão. Assim mesmo.

Desde o tempo em que os animais falavam que andava para comprar um candeeiro para um espaço lá de casa, mas não havia maneira. Ou por isto, ou por aquilo, ou porque não. E todos sabemos como é difícil ter uma ideia feita, bem esculpida, dentro da nossa cabeça, e encontrá-la materializada lá fora, leia-se numa loja, ali mesmo à mão de semear, disponível para a pegarmos e levarmos connosco.

Aproveitei uma aberta na chuva de Outono e saí, para comprar bolos. Nem gulosa sou (só por pudins!...), só que nesse instante pensei que um bolo seria um bom remate daquilo a que chamei almoço, um mimo. Mas, pés na rua, e os passos fizeram-me ignorar a pastelaria em questão e puseram-me a subir a calçada. Deve de ser um sintoma típico do cor-de-rosa, do feminino, isto de não ir direito ao assunto, de tornear e dar voltinhas, tropeçando em mil e uma coisas neste ziguezaguear habitual. Espreitei duas lojas de chinês, passei as mãos por umas quantas peças, imitações de outras mais bem acabadas. Olhei em redor e apreciei genericamente o brique-à-braque destes espaços que, em boa verdade, não apresentam grande originalidade, a não ser que aceitemos como original um conjunto infindável de imitações baratas. Olhei para muito e decidi-me por nada.

Saí, e continuei a subir a calçada, lembrando-me de que há uma loja de pequenos nadas absolutamente fantásticos, com um certo look neo-pop que sempre me fascinou. Vou passar por lá, pensei. E, como é óbvio, não passei, até porque “descobri” esta outra de candeeiros…

Já com a compra realizada e transportando um saco enorme e transparente, voltei ao local de origem, àquele de onde tinha saído com a firme intenção de me mimar com um bolo. Pelo caminho, as imagens do costume: janelas pequenas em rés-do-chão rasteiros, uma velha senhora de óculos redondos encavalitados no sítio que é suposto, fachadas gastas pelo tempo e outros sinais de um bairro antigo e familiar.

No final de contas, o mimo foi alcançado. Não o que tinha na ideia mas o outro, mais antigo e consistente. E se me perguntarem se para mim é mais bolos, direi: hum, talvez não!...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A sentença

Imagem tirada daqui

Maria, jovem casadoira de uma família de seis rebentos. Antero, jovem igualmente casadoiro e promissor, galante e galado. Ambos respiram o ar da mesma vila do interior, um ar que percorria os anos cinquenta do século anterior. Tempos passados.

Maria e Antero trocam olhares e suspiros e sonham sonhos que guardam para si. Aos poucos, esses mesmos sonhos vão-se tornando públicos e aceites por ambas as famílias, a dos seis rebentos e a outra, da qual não há memória de quantos ramos teria.

Antero, o jovem galante e promissor, atreveu-se a sair da redoma daquela vila do interior e arriscar-se até outra vila do litoral, em negócios que também fariam certamente parte dos seus sonhos, sonhos de alcançar um bem-estar maior, um estatuto maior, ser dono e patrão e poder regressar à vila do interior e resgatar Maria para ser sua dona e patroa e.

O tempo foi passando e os sonhos de Maria e Antero registavam-se em cartas, muitas, trocadas num vaivém lento entre o interior e o litoral, um vaivém curto, já que estreito é também o país.
O tempo foi passando e Antero aventura-se por outros territórios, descuida-se, distrai-se, retarda-se no seu sonho maior de resgatar Maria e, sem aviso nem querer, surge uma nova realidade na sua vida, uma nova vida, pequena, que chora e mama, de uma outra mãe que não a tão amada.

A notícia segue o seu curso no vaivém lento, desta vez em sentido único, do litoral para o interior. Aí chegou e sepultou-se. Caiu como um petardo, provocando estragos irreparáveis. Entre lágrimas e desilusões, soa a sentença da mater família, uma mãe pequena e austera, dura, talhada pela vida agreste de ter de dar rumo sozinha aos seis rebentos por si gerados. “Ele que pague a quem deve!” Eis o dedo acusador, a profecia maldita, o corte abrupto dos sonhos de Maria e Antero. Ele tinha viciado as regras do jogo, as mesmas que ditavam um comportamento vincado e irrepreensível e outras duras regras impunham que o seu vício fosse limpo pela assinatura de um contrato de casamento com aquela que não dormia nos seus sonhos, mas que lhe tinha dado esta nova pequena vida que chorava e mamava e teimava em crescer. E assim se reporia a verdade dos factos e se tapariam as bocas do mundo.

Sentença cumprida. Ele permanece no litoral, cresce no seu sonho de patrão e mingua no seu sonho de amor. Adapta-se, talvez. Ajusta-se. Sempre que encontra um familiar dela, por mais afastado que seja, conduz a conversa com um brilho nos olhos e pergunta por novidades. “Está bem? É feliz?”. Feliz não foi, arrecadada mais tarde por outro, viúvo e instalado na vida. Arrumou-se, como se usava dizer à época.
Arrumou o sonho e fechou-se dentro de casa. Deixou de ser, antes mesmo de ter conseguido sê-lo. Afável, doce e laboriosa, viu chegarem os cabelos brancos e abalar-se-lhe a voz. Morreu há muito, de leque na mão, numa cama de hospital. Com falta de ar. Teria feito quase cem anos, no dia das castanhas.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

When I'm sixty-four...

Imagem tirada daqui

Viajavam de Turim para Milão. Dois italianos, de pele e cabelo brancos e olhos claros. Um homem, outro mulher. Viajavam, seguiam em frente pelas suas vidas. Viajavam embalados pelo ritmo monocórdico do comboio e seguiam felizes, tranquilos.

Ela encostava-se-lhe ao ombro, aconchegava-se. Tinha um semblante de avozinha, calmo, sereno, aninhada que estava como um gato, aceitando a protecção desse encosto. Ele, igualmente feliz naquela serenidade da partilha, avançava pausadamente na conversa, de forma tão pausada que me era permitido entrar por ela dentro sem que a língua estranha erguesse qualquer barreira. Completamente clara e transparente, como se da minha se tratasse.

Ele ia-lhe contando o que se vai passando pelo Mundo, esse mundo endiabrado e confuso. Explicava-lhe as notícias, desdobrando-lhe as ideias de modo a que ela as compreendesse. Ela, numa espécie de torpor morno e adocicado, lá ia ouvindo, aparentando um interesse muito moderado, embalada pela voz dele que, essa sim, era o seu presente e a sua realidade e aquilo que lhe aquecia o espírito. Ele oferecia-lhe, ainda, pequenos nadas da sua vida passada: “este relógio que a minha mulher me ofereceu…” ou ainda “quando fiz aquele passeio na montanha…” Momentos que decerto ela não partilhou, mas que vive agora através do som daquelas palavras e que imagina, compõe cenários, acrescenta tons, cria enquadramentos. Tenta compreender.

Atrevi-me a traçar o perfil daqueles dois seres felizes que viajavam à minha frente e que durante duas horas partilharam comigo um momento das suas vidas. Fui uma personagem passiva e silenciosa, que os fitava e inevitavelmente ouvia. Não seriam um casal, daqueles com papel passado e registo oficial; antes seriam dois namorados. Antigos ou recentes não o adivinhei, mas de certeza que namorados seriam, pois não sofriam do pó do tempo e do desgaste que o quotidiano deixa nas longas vidas em comum. Pelo contrário, viviam momentos de ternura, dos tais que a tradição não nos habituou a testemunhar em pares desta idade. A muito custo, desviava de tempos a tempos o meu olhar comprometido desta felicidade sénior, e um sentimento de pequena inveja, o desejo do também quero, ia crescendo dentro de mim.

Resta a esperança de que o sorriso é possível numa qualquer idade. Will you still need me, will you still feed me, when I’m sixty-four?...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Baços brilhos...

(imagem tirada da net)

A vírgula entrou singela, altaneira, no seu vestido coleante. Desliza pela sala, dengosa. Recosta-se num sofá, com ar absorto e distraído.
"Vamos dançar?", pergunta. Ele. Baixo e atarracado, como que carregando sempre um peso sobre a sua cabeça. Vestido de preto, com ar um tudo nada fora de época, há muito que se tinha habituado a ver os outros de costas, rumando em direcção contrária à sua, desprezando-o e ignorando a sua presença. Ou, noutros dias e noutras horas, chamando-o para tarefas que não eram as suas, confundindo-o com outros parceiros, subalternizando-o.

Ela, sempre muito atarefada, sendo constantemente chamada a figurar em qualquer cenário, sempre presente. Ela, olhando-o de baixo para cima – não muito, dada a pouca estatura dele, coitado! – abriu um sorriso estreito e descorado, para deixar através dele escorregar um desinteressante “Não, obrigada…”

“É o costume”, pensou ele. Arrastou-se até ao balcão, pediu um gin e ficou a observar quem entrava. Viu aproximar-se aquele desmiolado do ponto de exclamação. Alto e magro, elegante até, não passava despercebido naquele círculo de acentos e letras desencontradas. Em tempos constou que tinha tido uma infância atribulada, e uma vida com questões mal resolvidas. Mantém sempre aquele ar admirado, espantado mesmo. “Bahh, mais parece um miúdo hiperactivo…”, concluiu o ponto e vírgula, “nunca entendi porque lhe dão tanta importância…”

Olhou na direcção do sofá onde ela permanecia recostada, agora acompanhada por dois pontos. “Sempre iguais, estes dois”, pensou, abanando levemente a cabeça. “Desde que os conheço que andam sempre juntos, inseparáveis, um verdadeiro Dupond e Dupont…"

Viu-a levantar-se e sorrir. Os dois pontos permaneciam no sofá, agora um pouco abandonados à sua sorte. Ela, a vírgula, altaneira, deslizava no seu vestido coleante e cumprimentava, dengosa, o travessão e os parênteses. Desdobravam-se em elogios e sorrisos, trocavam olhares cúmplices e gulosos e ela, olhando ora para um, ora para outro, começava a sentir uma leve tontura na sua cabeleira farta e loura, sem se decidir a qual prestar maior atenção. “São tão parecidos”, coube-lhe agora pensar, “quase se confundem…”

Ao fim de meia-hora de trivialidades, a vírgula voltou para o seu sofá, abriu a bolsinha da maquilhagem e retocou o rosto, onde leves traços se vincavam já. “Há que manter o brilho”, gracejou para si própria.

Ergueu a cabeça e os seus olhos procuraram os outros acentos. Naquela confusão de letras soltas lá os vislumbrou, ao fundo da sala, por entre uma atmosfera já pesada de fumo, aos seus admiradores, que se derretiam agora perante a nova frase da moda, que acabara de entrar. "Novos brilhos", pensou ela…

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Entre nós...


Fez ontem um mês que T. partiu alegremente para T., em I. Não interessa escancarar aqui a geografia dos nomes e lugares: quem sabe, sabe e a quem desconhece também nada muda. Há-de regressar em breve, mais completo. Necessariamente. Fica por enquanto a saudade, apesar da alegria da certeza de que vive bons momentos. E veio-me à memória, não uma frase batida como diz a canção, mas um texto de T., que me inspirou este outro à laia de resposta, mais curto, mas intenso:

Se eu fosse uma esferográfica, rabiscaria palavras de saudade e ternura,
Pintaria com cores garridas a tua imagem, para que os outros vissem aquilo que nunca esquecerei,
Traçaria uma linha que encurtasse a distância que vai de mim a ti.
Se eu fosse uma esferográfica, brilhante como tu gostavas quando eras criança.................
Se.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Os abraços de Pedro


Falar de Almodôvar é um exercício estafado, de tantas vezes feito. Falar da sua pintura de cores garridas e tons quentes, escaldantes mesmo, também não é nada de novo. Falar de como este espanhol excêntrico nos mostra uma Espanha (será que é só Espanha?... Claro que não) de habitantes impetuosos, com sangue do Sul e vidas cheias de emoções várias e choros desvairados, apenas sublinha o óbvio das suas personagens, o que está visível a olho nú.

Mas este último filme do cineasta é algo mais do que isso. Estes Abrazos Rotos são um registo de maior maturidade, em que se mantêm os ícones característicos de Almodôvar – as suas cores e emoções -, mas em que todos os aspectos cinematográficos sofreram, a meu ver, um upgrade notável: a estética muito cuidada, nos seus laivos neo-pop, em que os cenários rimam com um guarda-roupa a condizer; os planos que acentuam o drama vivido pelas personagens; os ângulos bem escolhidos; os diálogos bem articulados e uma construção da narrativa que, apesar de sinuosa, orienta o espectador através de uma história densa.

Os críticos da nossa praça parecem não aplaudir estes Abraços. Dizem que o realizador está nostálgico de si próprio e que o filme não passa de um drama intelectualizado. Quem sou eu para os contradizer? Ninguém, apenas alguém que saiu da sala de cinema com a satisfação de ter visto se não o melhor pelo menos um dos melhores filmes de Almodôvar. Um mimo!


quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mr. Right e Mr. Right Now

Imagem da Internet.


Vislumbrou o conceito numas páginas cor-de-rosa, das tais que raramente partilhavam a sua proximidade. Mas de quando em vez lá calhava, como há dias, quando uma colega lhe pousou aquelas duas revistas em cima da mesa a pretexto de uns artigos sobre os temas do costume. Os temas do costume… amor, sexo, moda, spas… e mais amor e sexo e moda e…

A alma gémea. Conceito velhinho este! Velhinho e matreiro, porque impõe tantas regras e é tão exigente que, não raramente, se traduz numa alma sem corpo, em alguém que dificilmente existe ou, a existir, habitará espaços tão distantes que só por acaso alguém lhe põe a vista em cima.

Esta alma gémea, que por aqui passou a designar-se por Mr. Right, não terá necessariamente que ser um dos inquilinos do Olimpo, se bem que muitas vezes assim pareça, pois normalmente tende a ser perfeito, tanto na aparência como nas qualidades exigidas. Aquelas com que todos nós nos identificamos, por mais arestas que tenhamos. Mas, se analisarmos bem esta alma gémea, ela fala-nos de alguém que funciona mais como um espelho de nós próprios, ou seja, como alguém muitíssimo parecido connosco. Logo, e por esta ordem de ideias, ela será alguém alto ou baixo, magro ou gordo, bonito ou feio, interessante ou nem por isso. Consoante a nossa própria imagem.

E é aí que Mr. Right Now tomou forma. Embrulhado em páginas cor-de-rosa, saído de uma entrevista/reflexão, ele é um sério candidato a destronar o anterior Mr. Right, também conhecido por príncipe (ou princesa) encantado(a). Mr. Right Now, esse sim, muito mais próximo de uma real alma gémea, mais plausível e, sem dúvida, mais compensatória. Este eternamente procurado “outro” (o Mr. Right) é, afinal, o Mr. Right Now, aquele que é compatível connosco e que pode até habitar vários seres e surgir em vários momentos da nossa vida (o que para quem não acredita na reincarnação da alma, esta é, sem dúvida, a única reincarnação possível). Um Mr. Right Now companheiro, que existe aqui e agora, que partilha das mesmas aspirações e dos mesmos gostos. Que ri connosco. Que partilha o quotidiano e nos ajuda nos pequenos nadas. Que, e parafraseando as autoras iniciais desta reflexão, se encaixa na nossa vida e nós na dele. Com os defeitos e qualidades que rimam connosco.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Mimos de ouro

Saiu de um, ainda com os sons desvairados na cabeça, para correr para outro espectáculo. Que o primeiro tinha sido uma experiência absolutamente arrebatadora, que começava devagar para crescer, imparável, preso numa espiral sufocante, sempre redonda, sempre em círculo…

Assim, correu para a outra sala a pouca distância da primeira. Comprou o bilhete e correu, uma vez mais, para engolir o pão que lhe adormeceria a fome e lhe permitiria concentrar-se noutro som e noutras imagens, bem diversas das que enchiam a primeira sala rendida àquele som religiosamente alucinado.

Sentou-se e esperou. Sentou-se e apurou os sentidos. Sentou-se e deixou-se invadir pela voz de veludo que a abraçava, que tudo e todos envolvia, remexendo velhas músicas desta vez maquilhadas por uma orquestração que só lhes dava nova morada para o sentimento de sempre. Dá gosto, pensou. E pensou mais ainda. Pensou que estava perante a versão masculina da Diva, da Senhora do fado. Pensou também que, de certo modo, ela perpetuava-se não através de uma mulher, como esperado, mas sim pelo timbre grave e sério e seguro desta voz de homem que, timidamente, se apresentava perante a plateia que o aplaudia de pé, uma e outra vez.

Saiu para a noite quente, reconfortada. Saiu com um sorriso na boca e um som de qualidade na alma. Saiu para o abraço apertado que coroava esta noite quente cheia de música. Saiu…

(Outros comentários a este concerto em “Carta Branca a Camané”…)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A reinvenção do circo

De animação de rua ao estrelato das tournées internacionais. Vinte e cinco anos a crescer e a amadurecer a ideia de reinvenção do circo. Magia pura, transposta em cor, música e, sobretudo, alegoria. Uma espécie de viagem ao nosso imaginário, uma viagem executada na perfeição dos cenários e da performance. Imperdível, sem dúvida.

Aqui fica uma pálida ideia do Varekai, último espectáculo do Cirque du Soleil, que me deliciou durante uma bela tarde de domingo e que conta a história do renascimento de um anjo depois de ter caído numa floresta mágica localizada no topo de um vulcão.

Palavras para quê? São artistas… de todo o mundo!



sábado, 6 de junho de 2009

Educação para a felicidade

(imagem da net)


Pressinto por aí um levantar de sobrolho, desconfiado e incrédulo: o título parece pomposo, descabido e piroso. Não, não tenciono dedicar-me à escrita de folhetins, nem de guiões de novela.

Ele surge porque há dias tive conhecimento de um programa de tempos livres para crianças, organizado por uma pequena empresa que se dedica a estas artes, e que me pareceu marcar pela diferença. A sua proposta vai no sentido de chamar a atenção das crianças para os pequenos nadas do dia-a-dia, para as coisas positivas que vivem na sombra, pois estamos demasiado amestrados para valorizarmos os tons negros em vez de outros mais luminosos. Desta forma, a proposta de ocupação do tempo de férias das crianças e jovens contempla a promoção de algumas actividades, na sua maioria muito simples, mas que ajudem a reconhecer os aspectos positivos da vida, já que para os outros existem demasiados treinadores, desde os media a cada um de nós. Assim, intercalam as actividades tradicionais, as desportivas e as idas à praia, com outras, em que lhes pedem para descreverem o que vêem de bonito, ou de bem feito no seu caminho de casa para a escola, por exemplo; organizam jogos em que o objectivo seja enumerar características positivas dos colegas de grupo, de modo a que no final do jogo cada um tenha sido presenteado com uma lista de qualidades que os outros lhes atribuem.

Aprender a valorizar o que de bom nos rodeia em vez de nos focarmos eternamente nas contrariedades, é a pedra de toque para a construção da felicidade. Apetecia inseri-la nos programas curriculares: educação para a felicidade, que podia englobar também temas de educação cívica e outros. A ideia, apesar de não ser minha, perfilho-a. Fundamental e urgente.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Lamento ou confissão?...

Que prenunciava esta voz de Cigala, que assim entrava por ali dentro, rasgando um Eu sei que vou te amar anteriormente de Vinicius?...
Lamento ou confissão. Ou ambos. Fechem os olhos e embalem-se…

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Ouçam como eu respiro...

(imagem retirada de aqui)

Respirava às vezes, por entre conversas cheias de cor com gente ao vivo. Respirava, também, entre palavras trocadas à distância de alguns cliques, sempre com gente cheia de cor para trocar com ela.

Nem sempre tinha essa sorte. Por vezes, sustinha a respiração, e exibia o sorriso número zero, o tal que tinha o condão de passar despercebido, antes que…

Naquele dia, teve a sorte de trocar umas garfadas por entre uma conversa animada que lhe encheu os pulmões. Respirava.

Esperava respirar mais vezes e descobriu que adorava charadas! Para bom entendedor… ;)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Feira do Livro

O mais importante acontecimento em torno do livro em Lisboa chega este ano com algumas novidades. A começar pela proposta de um novo modelo dos expositores dos livreiros e editores, e passando pela nova data para o arranque do evento que este ano começa mais cedo, a 30 de Abril. O Brasil é o país convidado, estando previsto um conjunto de actividades culturais – colóquios, encontros, animações, etc. – consignadas à literatura do país irmão. O Parque Eduardo VII continua a ser o lugar de passagem obrigatório para quem gosta de ler. (in: Agenda Cultural de Lisboa, Maio 2009)

Tudo isto é verdade. Mas, e uma vez mais, para quando um novo formato de Feira do Livro? É que a Feira, tal como ela acontece, é uma realidade já bastante antiga, com um formato que servia as necessidades de outros tempos, quando ainda não existia a FNAC nem as grandes superfícies, nem outras pequenas feiras do livro cresciam que nem cogumelos um pouco por todos o país. Nessa época, este evento era aguardado com ansiedade e constava das nossas agendas como uma altura onde, finalmente, se iriam comprar mais barato aqueles livros tão desejados e onde haveria oportunidade de ter uma visão de conjunto do que se tinha editado.

Hoje em dia este modelo peca por defeito. Peca por ser curto e coxo, pois as motivações de ontem já não são suficientes, dada uma maior oferta neste campo. Há que tornar a Feira do Livro num evento cultural mais alargado, onde o protagonismo continue a ser dos livros, obviamente, mas onde se possa também assistir a actuações várias, como teatro, música, dança, etc. É caro? Depende. Porque não convidar escolas de dança, ou de outras actividades, a darem pequenos espectáculos? E que tal transformar também este recinto numa opotunidade para novos talentos, novos músicos, ou outros? E porque não promover mostras de produtos portugueses? Reduzir a programação cultural a sessões de autógrafos, à Hora do Conto, a palestras e pouco mais, por muito interessante e pertinente que isso possa ser, parece-me escasso e, além disso, pouco assertivo.

Enfim, aqui fica o desabafo. O livro não tem de ser mostrado isoladamente, como se ao misturá-lo com outros produtos culturais o estivessemos a menosprezar. Nada de mais errado, a meu ver. Ele respira muito melhor se estiver acompanhado e, desde que haja um critério de qualidade na escolha dos eventos a realizar, transformar esta Feira num verdadeiro acontecimento cultural é um favor que lhe fazem. Se a quiserem salvar... claro!

terça-feira, 5 de maio de 2009

E viva o Pedro! Hoje e sempre






Pedro – São rapazes simples e extremamente disciplinados que procuram uma realização intelectual. Têm tendência para monopolizar as atenções. É um nome que deriva do latim e significa “que é firme como uma rocha” ou "pedra".

Pois...
Estas "classificações" valem o que valem, ou seja, nada. Apenas nos divertem, como num puzzle em que tentamos encaixar as peças. E que às vezes sobram! Como se pode ver, aqui anda o rapaz à procura da realização intelectual... ;)
Para ti, meu Amor, um grande beijo de parabéns, hoje, nesta primavera em que ainda só contas dezasseis...
E, como para terminar, aqui ficam estes dizeres de Vinícius de Moraes, alguém que melhor do que eu conseguiu fazer um hino aos filhos:

Poema Enjoadinho

Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinicius de Moraes

domingo, 3 de maio de 2009

A morte de Corín Tellado… ou o meu mundo não é deste reino

(imagem da net)


O meu mundo não é deste reino, é uma espécie de mote recorrente, que lhe visitava o pensamento a propósito de muitas situações: de um reino de cálculo ou de conta, daquela que faz, especificou, uma vez mais de si para si.

Na sua frente uma mancha de pequenas teclas pretas, que podiam dizer muito ou mesmo tudo do que se passava neste momento no seu mundo. O tal que vivia obstinadamente do lado de fora do reino, talvez porque a portagem fosse demasiado cara ou talvez porque o caminho para entrar no reino não se lhe apresentasse como o mais interessante. Demasiado poeirento, pensava.

Nunca pensou que esse seu mundo fosse cor-de-rosa. Antes pelo contrário, já que essa cor a incomodava e não lhe reconhecia grande interesse. Antes pensava que esse seu mundo fosse assim mais para os tons terra, aqueles que nos agarram ao chão e nos deixam criar raízes. Os tais que pensamos ser de Outono, mas que nem tanto, já que este prefere outros matizes, mais variados, como variegadas são as suas folhas.

Mas voltando ao cor-de-rosa. Lembrou de alguém que há pouco, muito pouco, lhe tinha dito que a Corín Tellado já tinha morrido. Ah… sim?!... Pois… respondeu ao trocadilho com um meio sorriso em tons cinza. Que a Corín Tellado nunca tinha existido realmente a não ser na utopia do sonho e do querer. Esse querer que tantas vezes nos afasta dos tons terra e teima em dizer que o cor-de-rosa ainda está na moda…

Concentrou-se na mancha de teclas negras que se comprimiam rapidamente sob os seus dedos, à velocidade em que o seu mundo ia descolorando, e vagueava perdido entre os tons terra e o cor-de-rosa, cada vez mais descorado…

Continuou percorrendo as teclas até que o relógio a trouxe de volta à realidade. Desligou tudo, levantou-se e preparou-se para abandonar o seu mundo a outros cuidados, talvez aos deste reino... Bocejou, programou o despertador que também não pertencia ao seu mundo mas a este reino e decidiu-se, sorrindo com o fim da metáfora: vou ter de mudar de tinteiro.

terça-feira, 28 de abril de 2009

O valor das ideias


O valor das ideias é um blog de Carlos Santos, Professor de Economia, e que aqui ajudo a divulgar. Em especial, o seu post contra a tortura, ou melhor, contra quem, hoje em dia, ainda defende esta prática como um meio eficaz e necessário nas sociedades modernas:Houve ontem quem louvasse o regresso da tortura a Portugal

segunda-feira, 27 de abril de 2009

É uma casa portuguesa... de certeza?!...

Palacete de D. Chica, Palmeira, Braga, Portugal
Foto: Júlio de Matos


São os lares dos torna-viagem de outros tempos. Idos, longínquos. São casas de quem saiu cheio de esperança, cheio de vontade de regressar endinheirado. E assim foi. Na transição do século XIX para o século XX, mais concretamente entre 1860-1930, portugueses nortenhos, de uma classe média rural, rumaram ao Brasil e regressaram com fortuna feita, passando a fazer parte da classe possidente local, daquela pequena franja que ditava as regras ou pelo menos influenciava a vida pública. Construíram casas apalaçadas que ostentavam o produto do seu esforço e o sorriso da sorte que lhes batera à porta. Estas "casas de brasileiro" mostravam as marcas não só da riqueza dos donos como também de gostos alheios aos nossos e quase sempre misturados, num resultado eclético que veio transformar o panorama da arquitectura nacional, a paisagem do Alto Minho e marcar definitivamente uma época.

Algumas destas casas dariam excelentes cenários para filmes, onde viveriam figuras míticas, damas e cavaleiros, monstros e outros seres que povoam o nosso imaginário. Cinquenta delas foram captadas pelo olhar de Júlio de Matos, arquitecto e fotógrafo de Braga, dando origem a uma exposição da iniciativa do Ministério da Cultura de Portugal, no contexto das “Comemorações dos 200 anos da Ida da Família Real Portuguesa para o Brasil” e patente ao público no Brasil (Museu Nacional, do Complexo Cultural da República de Brasília, no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e no Museu de Arte da Bahia, em Salvador). Estas fotografias encontram-se também editadas em álbum fotográfico, com texto de Jorge P. Sampaio (Casas de Brasileiro, DeMatos, Braga, 2008)

sábado, 25 de abril de 2009

35 anos




Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar


Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim


A primeira versao de "tanto mar" tinha sido censurada devido a canção ser uma saudação à Revolução de Abril de 1974 em Portugal. Foi gravada totalmente pela primeira vez num espectáculo ao vivo com a Maria Bethania, que foi passado para disco (em 1975). A segunda versão foi gravada no início de 1976 e refere-se ao Novembro de 1975 em Portugal e ao fim do período mais revolucionário que por cá se vivia.
(in: http://natura.di.uminho.pt/~jj/musica/html/buarque-tantoMar2.html)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O infinito pode esperar?

(imagem retirada da net)


Deu meia-volta na cama e procurou adormecer. Mais meia-volta mas o sono tardava, andava arredio, dando espaço a pensamentos mais densos. Não sabia por onde deveria cortar – ou melhor, isso até sabia, mas não lhe apetecia. Como seguir o impulso e ceder aos sentidos, se a cada esquina novo coelho saía da cartola, sempre negro, num discurso profético em que se anunciava um desfecho doloroso para uma existência já de si sofrida? Como persistir no querer quando outra tentação lhe segredava ao ouvido palavras doces com promessas cheias de sol? Mas como avançar para esse sol, envolto num algodão doce, se o impulso teimava noutra direcção e lhe punha na boca o gosto amargo que não passa, por mais algodão doce que se coma?

Veio-lhe à memória uma fidelidade em forma de soneto, com sotaque adocicado, como doce era também a sua letra:

De tudo ao meu amor serei atento / Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto / Que mesmo em face do maior encanto / Dele se encante mais meu pensamento.

E esta fidelidade continuava o seu canto até que concluía:

E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.

Fez marcha a ré nos pensamentos, já que o sono assobiava ao longe de costas voltadas. Infinito não terá sido, pensou, e o olhar quase se embaciava, recordando-se de outra vida vivida. Mas também houve sol nessa outra vida.

As memórias começavam agora a aproximar-se do tempo recente; parecia que vinham a todo o vapor e serviam-lhe de bandeja outras lembranças. O futuro não acaba amanhã, sorriu-lhe esta. Desfilavam como fantasmas elegantes nesta noite sem sono. O tal que teimava em assobiar para o alto, qual miúdo travesso: se ao menos ele fizesse o que lhe competia, pensava, já não tinha que me ocupar com estes pensamentos circulares, abrigos destes fantasmas elegantes…

Ao fim de mais umas voltas o sono resignou-se e entrou, de mansinho, dando-lhe tréguas. Até ao despertar.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Pertencer

Na senda do post anterior, esta é a música que se impunha e que rima com esse texto. Contra a discriminação. Chamo a atenção para a letra, da qual aqui deixo o refrão:

O meu nome é João e vivo ao teu lado
O meu nome é Yuri do continente gelado
O meu numero é zero nesta democracia
Deixa-me pertencer, eu quero pertencer-te...

É o que faz estar muito tempo sem escrevinhar: o pensamento retarda-se e teima em pastar na nebulosa da "branca maldita"! :):)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entrevista


Desligou o telefone com um suspiro. Seria desta?

Ao abrir a porta percebeu imediatamente que era. Na sua frente, uma mulher com cara simpática, afável, cabelo curto e lenço ao pescoço, preso com um alfinete em forma de flor. Formas quase redondas, a tender para o cheio, ar lavado e engomado. Sorriso franco.

Há oito anos que vinha do Leste. Ia e vinha, entre as saudades da terra e dos filhos e a necessidade de trabalho. Caminhava para cá, deixando no pensamento um rasto de saudade e preocupação, presos numa cidade distante de um país gelado, à direita no mapa.

Enrolava as palavras lusas e fazia um esforço por dar forma às ideias e ao que precisava de dizer. Do sorriso aberto espreitava um dente de ouro, fora de moda no lado de cá da Europa, mas que talvez falasse sobre um modo de vida de alguma forma parado no tempo. Ou pelo menos, no nosso tempo…

Limpava, engomava, e lá ia e vinha, num circuito sempre igual, ritmado e seguro, que inspirava confiança. Ia e vinha até um dia, em que anunciou a ida para tratar da mãe, doente e gasta, que esperava em silêncio do lado de lá, à direita no mapa.

Prometeu deixar outra em seu lugar – possivelmente parecida, vinda do mesmo sítio e viajante no mesmo percurso e com o mesmo destino.

Desligou o telefone com outro suspiro. Seria desta?...

quarta-feira, 18 de março de 2009

O desabafo do i...


Deve de ser da crise: não há quem não se queixe, até o nono filho do alfabeto já apresenta sintomas de depressão e anuncia publicamente que vai mudar de vida. Divirtam-se!

segunda-feira, 2 de março de 2009

Um bairro daqui...


Este bairro tem ruas antigas, com passeios de pedrinhas, tortas, e tascas, e trolhas. Muitas tascas, atafulhadas de homens (quase só homens entram e comem nestes lugares esconsos e estreitos). São os restaurantes dos homens de prato cheio e de assador à entrada. Sempre me intrigou a atracção deles por este tipo de lugares. São ruas também povoadas por muitos trolhas, descansando entre o meio-dia e a uma da tarde, de mini na mão e beata no canto da boca. E na boca piropos foleiros, antiquados e desusados, que largam sempre que um par de saltos altos lhes passa diante do queixo. Num dia que passou há pouco houve um, contudo, que me fez sorrir, de naif que era: “Ó menina, passe por aqui mais vezes…”, saiu-lhe.

São ruas do sul, ruas de gentes morenas, ruas com gatos e buracos e pequeninas lojas de linhas e botões. E muito sol. São ruas com peixe assado e tiras de entrecosto. São ruas com roupa estendida à janela, em prédios de três andares e águas-furtadas. São ruas com carris de carros eléctricos, uns que ainda passam, outros que já não… São ruas que não entendem estrangeiro, não acolhem executivos fardados de cinza, nem percebem o porquê da crise financeira. Estas ruas não são de agora mas sim de um qualquer filme neo-realista italiano, sem a atitude padronizada dos dias de hoje, mas com o sentimento de sempre.

Passo por elas e vem-me à memória o fado de Mariza:

(...)
Oh gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que recebi
(...)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Outras leituras para este Leitor...

The Reader, de Stephen Daldry

Alemanha, anos 50. Pós-guerra e uma Berlim ainda devastada: as ruas apresentam as marcas das armas e os habitantes as marcas da derrota. Pressente-se a crueza dos dias, a dificuldade do recomeço.

Este é o cenário inicial de O Leitor (The Reader), um filme que, segundo quase todos, nos transporta para os dramas do Holocausto e de uma Alemanha envergonhada e traumatizada pela sua História recente. Verdade mas redutor, a meu ver, já que este filme diz muito mais do que isto. Senão vejamos:

Um adolescente de 15 anos (Michael Berg) conhece por acaso uma mulher, com cerca de 35 (Hanna Schmitz). Apaixona-se por ela e vivem uma relação, naturalmente clandestina. Até aqui nada de novo, não fosse o caso de ela gostar que lhe lessem livros e vivesse essas histórias de forma tão intensa como se assistisse a uma peça de teatro que muito lhe dissesse. A relação entre ambos prossegue, a um ritmo comandado por ela e estimulado pela leitura dos clássicos que ele lhe faz chegar. Um belo dia, ela desaparece sem deixar rasto e, oito anos mais tarde, ele descobre-a como ré num julgamento de um caso de Holocausto, onde ela se lhe revela como tendo sido guarda prisional em Auschwitz e tendo sido co-responsável pela morte de prisioneiras judias.

Esta é a história óbvia do filme, trazendo para a boca de cena uma vez mais os dramas da II Guerra Mundial, tema aliás ressuscitado ultimamente por outros filmes como Resistentes, O Rapaz do Pijama às Riscas ou ainda Valquíria. Contudo, o aspecto mais interessante e talvez mais inovador desta história reside no perfil psicológico da personagem de Hanna, uma mulher que aparenta uma origem talvez rural, analfabeta, e com um quadro mental muito próprio, em que o seu analfabetismo lhe dita as regras de conduta e lhe confere padrões éticos diferentes dos das outras pessoas. O seu ar sofrido leva-nos a pensar que se envergonha do seu passado como guarda prisional. Puro engano. Hanna apenas se limitou a cumprir a sua função o melhor que sabia e este ar sofrido advém antes de uma contenção de carácter, da sua obsessão em esconder o seu analfabetismo, limitação essa que, a seus olhos, a diferenciaria dos outros, qual alien de outro planeta.

A moral, a ética do direito (patente no respeito que a personagem Michael Berg revelou ter por ela, enquanto ré, ao não revelar o segredo de Hanna: a sua incapacidade para ler), o rígido quadro psicológico dela, que até na sua morte se revelou, uma vez mais, coerente (tem de morrer já que foi condenada a prisão perpétua...) são, quanto a mim, as pérolas deste filme que, não sendo arrebatador, promove uma reflexão muito interessante.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Small talk para dias cinzentos...

Small Talk 11" x 14"Acrylic on canvas panel (retirado de aqui)


Tenho que aprender a falar, pensou. Aprender a gastar palavras pequenas, juntá-las em comboios formando frases conhecidas, daquelas que toda a gente reconhece facilmente e sem esforço, daquelas que não obrigam os outros a pensar muito, ou sequer a pensar um pouco, e para as quais toda a gente conhece antecipadamente as respostas. Confortáveis frases, sobre banalidades, queixumes recorrentes e inconsequentes, dos tais que existem apenas para preencher o vazio da falta de palavras com mais sentido, enjeitadas pelas bocas e cabeças de muitos.

Esgotou o tema tempo, estafou-o, falou dele até à exaustão que a chuva e o vento lho permitiam. Deu-lhe uma boa parte da manhã, nos encontros repetidos e rotineiros de todas as manhãs. Trocou as nuvens carregadas pelo desejo do sol ausente, e regressou à neblina do vazio de palavras sem sentido.

Faz pela vida, continuou pensando. Constrói uma vidinha de pequenos nadas, enquanto esperas pelos grandes, desconhecidos, e aprende a falar do tempo, dos gatos, da vizinha da frente ou do lado ou de cima. Sobe e desce no elevador as vezes que forem precisas para ganhar coragem, ou ritmo, ou tema para estas coisas nenhumas que enchem o dia-a-dia. Aprende o interesse dos outros, para que se interessem por ti: um pequeno nada no meio de tanta coisa nenhuma, grande, imensa, sufocante, que tanto os atrai.

Inscreve-te. Faz parte. Corre, corre…

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Inconformismos

Revolutionary Road, de Sam Mendes


Estreou há dias o último filme de Sam Mendes, o homem que já tinha realizado Beleza Americana, esse filme espectacular sobre o modo de vida da classe média dos States. Tema recorrente este, já que é também sobre a classe média americana e sobre a vidinha caseira, pacata e ordeira de um casal dos anos 50 que Sam Mendes nos conduz o olhar.

Subúrbios de Connecticut, 1955. A vida do casal Wheeler não corre sobre rodas. Vida organizada, de um casal com dois filhos e um emprego estável, não chega, no entanto, para satisfazer as aspirações desta dupla que se julga de certa forma “especial”. O mote “Paris” surge nas suas conversas como um escape, uma libertação, um ideal de liberdade e uma promessa de uma vida cheia, plena de satisfação pessoal, em contraponto com aquela pacatez e monotonia americana de subúrbio ajardinado e soalheiro, em que os dias se adivinham iguais e sem estremecimentos. Ao terem mudado para Revolutionary Road (a morada da casa que alugaram quando nasceram os filhos e onde resolveram instalar-se), não poderiam imaginar, contudo, em como este nome lhes seria premonitório. Um autêntico caminho revolucionário, que rimava com a ideia de tudo abandonarem e recomeçarem a vida em Paris, onde ela trabalharia e ele teria tempo livre para descobrir o que quereria fazer da sua vida, revolucionando por completo o sistema, o American Dream, que ditava que o homem era o cabeça de casal e, por isso, que a ele cabia sustentar a família; que ditava, também, que uma família com filhos deveria pautar o seu quotidiano por um ramerrão sossegado; que ditava, ainda, que era normal aceitar-se um emprego estável, ainda que completamente desinteressante, e que a fogosidade de outros voos ficava vedada aos casados com responsabilidades familiares.

Sonho e realidade. De que maneira é que o sonho se pode tornar realidade ou, pelo contrário, será que se trata de duas situações antagónicas e inconciliáveis... No caso dos Wheeler, a “revolução” contra o conformismo que pensavam levar a cabo não viu a luz do dia e transformou-se no maior pesadelo das suas vidas.

Adaptado do romance de Richard Yates, os diálogos exprimem, assim, um sabor literário muito interessante. Com uma realização muito bem conseguida, através de planos em que a acção decorre de forma suficientemente explícita mas sem que o óbvio nos seja servido de bandeja, a empanturrar-nos com finais de diálogos desnecessários, e de uma composição de personagens perfeita, em que todas elas têm uma função bem definida, este filme revela-se como um dos melhores dos últimos tempos. De salientar o excelente desempenho de Kate Winslet, no papel da protagonista insatisfeita e sonhadora e de um Leonardo DiCaprio maturo. A personagem do vizinho louco, interpretada por Michael Shannon, faz-nos lembrar um pouco o Coro das tragédias gregas, a voz da consciência, aquele que goza da liberdade para dizer a verdade, sem se intimidar pelo discurso das conveniências sociais.

Um filme que merece as cinco estrelas. Uma reflexão absolutamente imperdível.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A Coragem e o poeta fingidor...


O poema que abaixo se transcreve é commumente atribuído a Fernando Pessoa, mas parece que tal não é verdade. Até porque também parece diferente do estilo da escrita de Pessoa. Na forma e no conteúdo, o espírito do poema que nos chega pela rede traz-nos malhas que alguém teceu, possivelmente não esta Pessoa mas outra, que este Fernando, apesar de poeta fingidor confesso (O poeta é um fingidor /Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente), não parece ter vivido assim de forma tão afirmativa. Há quem defenda, portanto, a ideia de falsa autoria, e eu, apesar de não ser entendida em Pessoa, subscrevo. Mas, independentemente da discussão acerca da autoria do poema, o certo é que constitui um lema a seguir. Para quem conseguir...

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Palavras sem sentido

Automat (1927), de Edward Hopper

Tinha umas palavras alinhavadas agarradas ao fundo de um outro texto num qualquer documento gravado, mas não as encontrava. Abri e fechei todas as pastas possíveis e nada. Sabia que era uma história de uma mulher que aguardava ser chamada para uma consulta mas a chamada tardava. Assim como já tardava o reencontro com essa pequena história, algures guardada numa qualquer pasta que teimava em não aparecer.

Seriam palavras sem sentido mas ainda assim tinha-lhes afeição, vá lá saber-se porquê!, e isto de deixar palavras soltas por aí era coisa que não me agradava… Até porque a sorte dessa mulher que esperava ouvir o seu nome ditado pelo altifalante do consultório médico começava a angustiar-me; essa espera prolongada não me estava nos hábitos e deixar alguém assim entregue à sua sorte afligia-me.

Saltitava entre ideias, enredada em começos de outras histórias, todas elas embrulhadas em inícios estranhos e com fins duvidosos, ao mesmo tempo que uma mulher sentada numa sala de espera de um qualquer consultório permanecia no meu espírito. Preocupava-me. Já a conhecia há algum tempo e pressentia-a ansiosa, de vinco na testa, consultando o relógio a cada trinta segundos e apurando o ouvido na esperança do nome anunciado. Mas nada.

Pensei chamar alguém que viesse em meu auxílio: não um médico ou enfermeiro, que para isso lá continuaria a mulher sentada na sala de espera do consultório, que era para esse fim que tinha encaminhado os passos, mas de outro tipo de auxílio, talvez mais técnico, talvez informático, que uma mulher sozinha, perdida entre bits e bites, angustiava-me.

Experimentei a velha técnica de desligar e voltar a ligar, que isto nunca se sabe… Aguardei uns minutos, que a máquina já não era nova e cansava-se nestas andanças de cá para lá. Ao virar de uma esquina tecnológica lá apareceu a pobre, cansada, esgotada de tanto esperar um final para a sua história sem sentido nenhum. Alegrou-se-lhe o rosto, o dela e o meu, e tomei-a pela mão. A sua espera segue dentro de momentos, exactamente no ponto onde a tinha abandonado…

Cá está ela, sentada. É alta e magra, e leva a mão ao cabelo num tique repetido amiúde, compondo uma madeixa teimosa que lhe descai sobre a testa. Os olhos vagueiam por uma revista fora de prazo que segura sem convicção, voltando as páginas para a frente e para trás.

Um nome surgiu no altifalante. Era agora. Levantou-se, pegou na mala atafulhada de inutilidades diárias, na gabardine e seguiu. Seguiu em frente até virar no corredor à esquerda e desaparecer numa porta estreita com uma maçaneta quebrada.

Voltou passados vinte minutos. Da conversa dentro de portas não adivinhava o rasto, somente o seu ar preocupado deixava antever um resultado menos feliz, ou mais apreensivo. Dirigiu-se ao balcão e recebeu um carimbo num papel, outro noutro e saiu, passando a curta distância de mim que a observava. Olhava-a... Para onde iria ela, que caminho seguiria? Não sabia, mas as ideias surgiam-me calmas, primeiro cinzentas, esfumadas, depois carregando um pouco mais nos tons, ganhando forma. Certamente iria para casa, colher o aconchego de um calor familiar que lhe lamberia as feridas da alma provocadas por uma notícia mais preocupante. Ou certamente, ainda, iria trabalhar, calando a mesma notícia preocupante que procuraria disfarçar num rosto sem expressão, para deixar à porta do gabinete o que lhe martelava o cérebro e lhe dificultaria a concentração. Ou, certamente também, nem uma coisa nem outra, antes encaminharia os passos para uma qualquer rua apinhada de gente, onde se esconderia na multidão e não teria de se preocupar em escolher um rosto diferente para mascarar a preocupante notícia que acabara de ouvir. Ou, com toda a certeza ainda, apressaria o passo em direcção ao laboratório recomendado e anularia as dúvidas numa outra certeza mais desejada.

O altifalante na sala de espera continuava a debitar nomes que ganhavam corpo e se levantavam, em direcção ao corredor com portas estreitas. Já só tinha uma pessoa à minha frente para ser atendida. Deitei uma olhadela à mala, à gabardine bege que tinha pousado na cadeira a meu lado e fiz recolher esta mulher de rosto preocupado para dentro da pasta de documentos, não sem antes ter escrito um ponto final. Desliguei o computador e fechei a tampa. O altifalante debitou então um nome que identifiquei como meu.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Convívios a sépia...


Olhou distraidamente em direcção à moldura grande que se encostava preguiçosamente contra a parede e voltou a olhar, agora com outros olhos, um pouco mais focados na imagem da mulher jovem que habitava a moldura. Habitava-a num ambiente em tons sépia, segurava um Chanel Nº 5 e, numa atitude coquete, sugeria uma sensualidade, ajudada por mil e um pormenores liderados por uma alça descaída. O glamour e a sensualidade andavam de mãos dadas nesta imagem; nesta imagem e em todas as outras, por demais conhecidas e que desde sempre passaram sob os olhos de todos, anunciadas com um rótulo, sempre o mesmo, o do desejo e o da crítica.

Nunca teve nenhuma predilecção por esta jovem mulher, reconhece. Possivelmente porque ela lhe chegou já datada, fora da sua época… E possivelmente também porque o rótulo que lhe colaram não coubesse na galeria daquilo que tinha por certo admirar. Por isso, a estranheza desta presença agora, tão próxima, partilhando um espaço destinado ao sono e ao sonho. Talvez porque os tons sépia do ambiente em que a jovem mulher retratada, aprisionada nesta moldura, vivia, rimassem com os tons do cortinado que quase lhe sussurrava confidências, de tão próximo que estava. Sim, só pode, confirmou para si própria sem se envergonhar.

Voltou a olhar na direcção da mesma e fixou-se nos caracóis dourados, transformados num indefinido branco luminoso por conta dos tons sépia dominantes no tal ambiente em que vivia a mulher jovem. Eram de algodão, pensou, e quase se sente a macieza do toque. Voltou-se para o outro lado, entreteve-se com outros pormenores que nada tinham a ver com esta história, mas o seu olhar voltou a pousar sobre esta superfície em tons sépia e no jogo de sombras que envolviam esta mulher jovem. Agora era a voz que, por certo, lhe sairia pequena, num sopro. Voltava a olhar em direcção a tudo o que se estava a passar dentro daquela moldura e sentia como se estivesse numa sala de espectáculo, momentos antes do início de um concerto, em que todos os instrumentos falam por si, num diálogo de costas voltadas, numa afinação com um objectivo comum. Também aqui se adivinhava um objectivo comum, um som comum, apesar da algazarra de vozes que, surdas, se escutavam através de um olhar em direcção à moldura grande em tons sépia.

Decidiu que era tarde e apagou a luz. Tentou pôr um ponto final ao cobrir de negro os tons sépia onde vivia aquela personagem que sempre lhe fora tão estranha. Apesar do negro, continuou a ouvir as vozes que saíam desta moldura e que contavam histórias. Vozes de um passado, todas em tons sépia...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida…


Se eu fosse uma esferográfica…


Se eu fosse uma esferográfica, gostava de ser brilhante, como uma estrela de cinema.
Adorava escrever a palavra “Mena”.
Saber escrever todas as palavras, até mesmo as inglesas.
Gostava de escrever sempre em papéis às cores.


Tiago


(Texto redigido aos 9 anos de idade, durante uma aula do 3º ano de escolaridade, no Jardim-Escola João de Deus, na Primavera de 1998).



Gostava de ter tido a capacidade de escrever este texto com a mesma idade mas não tive. Aqui fica a homenagem, através das suas próprias palavras, precoces, belas e inocentes. Precisamente à mesma hora em que nasceu. Hoje, aos vinte anos, continua com o mesmo sorriso e o olhar ainda inocente de quem muito tem ainda para viver. Porque hoje é o primeiro dia do resto da sua vida…


Parabéns, meu amor!

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

No sentido inverso ao dos ponteiros do relógio…


The curious case of Benjamin Button

Life can only be understood backward...
... it must be lived forward


Um relógio que anda ao contrário, marcando um Tempo em retrocesso; um bebé que nasce velho e que caminha da morte até ao berço; uma sucessão de pequenos acontecimentos triviais do quotidiano, questionados em muitos “ses”, e que conduzem a um final trágico de uma perna quebrada e uma carreira interrompida. Estes são alguns dos aspectos que saliento nesta narrativa construída em 1921 por F. Scott Fitzgerald, agora adaptada a cinema por David Fincher. Deve-se ao desenvolvimento da técnica a possibilidade de visualizar esta obra, quer através de planos que “encolhem” Brad Pitt até ao tamanho da criança Benjamin Button, quer através da fabulosa caracterização das personagens, ora envelhecendo-as, ora, e sobretudo, rejuvenescendo-as, qual cobiçado elixir da juventude!

Num registo que faz lembrar o realismo fantástico sul-americano, esta história constrói-se como que num delírio, à primeira vista apetecível, mas que cedo se revela um verdadeiro pesadelo, pois viver ao contrário dos outros, num tempo próprio e invertido, compromete o futuro, tornando-o desacompanhado daqueles de quem gosta, vendo morrer os mais velhos, aqueles que percorrendo a vida em frente, acompanha caminhando para trás, em direcção a uma juventude e infância que ditarão o seu fim.

Não é o primeiro nem será o último filme a centrar-se na questão do Tempo. Lembro-me, por exemplo, de A Segunda Juventude, de Francis Ford Coppola, em que um homem de 70 anos mantém uma vitalidade de um de 40, e que em vez de envelhecer, rejuvenesce.

O Tempo dá pano para mangas. O Tempo, esse ditador, elemento que nos norteia a existência, nos condiciona. Um verdadeiro quebra-cabeças...

Stand by me...

Playing For Change: Song Around the World "Stand By Me"

Para começar bem a semana, aqui fica a voz de muitos, para sorriso de todos...

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Assim falou D. José...

(imagem da net)

O aviso de D. José Policarpo às mulheres portuguesas caiu mal. De pronto se levantaram as vozes do politicamente correcto, pretendendo pôr nas palavras ditas aquilo que os seus ouvidos dizem ter ouvido e dar-lhes uma interpretação que atiça a discórdia. Em que é que as palavras dele atrapalham os desejos de ecumenismo? A meu ver, em nada. Porque não foram contra o islamismo ou contra qualquer religião, mas apenas sublinhando as diferenças culturais, provenientes das diferenças religiosas e outras, que existem entre ocidentais (católicos praticantes ou não) e islâmicos. Os mesmos que se indignaram contra estas palavras têm também revelado indignação – e bem – quando se tornam conhecidos casos de mulheres subjugadas por terem casado com muçulmanos e emigrado para o país do marido, não se habituando a um modo de vida completamente contrário ao que estavam habituadas.

Sinceramente, penso que era este o sentido das palavras de D. Policarpo e não outro. Sinceramente, também penso que os “indignados” também assim o entenderam. Sinceramente, parece-me que estamos perante uma tempestade num copo de água…

Ou como ironizava uma senhora que conheci em tempos: “Se se pode complicar, para quê fazer simples?!...”

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A ver navios...



No terraço, num tempo dividido entre o café e o cigarro, partilhavam-se saídas. Saídas longas, traduzidas em viagens de Verão, com muito sol, daquelas alimentadas o ano inteiro para se esgotarem numa semana ou duas de glória.


Estás a ver aquele paquete? Já viajei num deles. Fantástico, adorei!, gabava-se justamente um, invocando as suas memórias de dias felizes, a bordo e na companhia dos seus. Aquilo é que é vida!, continuava. Ora, nada melhor do que partir com uma mochila às costas, dizia outra. Virei-me e, involuntariamente, franzi o sobrolho, desacreditado: justamente aquela que nada nem ninguém previa que tivesse esse tipo de memórias, de experiências. A resmungona crónica, sempre sombria, sempre a protestar por tudo e por coisa nenhuma. Quem diria!, pensei. Não era fácil imaginá-la assim, gaiata e ligeira, a carregar uma mochila às costas por um qualquer monte europeu, gozando dos prazeres da descoberta. Sendo feliz, em suma.


E a conversa continuava, livre e leve. E mais isto e mais aquilo e mais outra experiência. Conheces…? Ah sim, já lá estive… E foste…? Por acaso aí não cheguei, mas vi o…e a…


Passados poucos dias outro paquete desfilava no rio e outra conversa surgia, a propósito. As memórias de viagens abrem-nos sempre o sorriso e desenham no nosso espírito pensamentos coloridos, dos tais que pintam os dias de Inverno. Que nós por cá não nos podemos queixar muito, que nesta cidade, cheia da claridade reflectida neste rio lindo, os dias cor de cinza quase se contam pelos dedos. E quando chegam enchem-nos de birra, ficamos sem disposição para nada a não ser suspirar pelo sol e pedir contas a S. Pedro por tamanho castigo. E aí, voltamo-nos para o rio a olhar os navios ou abrimos a agenda grande para percorrer o mapa, que o “vá pelos seus dedos” é a opção mais à mão…

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Dos sonhos aos Reis…



Tinha a mesa posta desde a Consoada. A mesa onde raramente comia, reservada para as visitas, raras, mas por quem sempre se ficava à espera que aparecessem, Quem sabe não aparece por aí alguém hoje…, pensava e dizia, de si para si.

É tempo de Festas, das tais que nos trazem bolos e tradições e memórias. Tempo de arroz doce e filhoses, bolo-rei e sonhos. Vários. Sempre gordos e com muito açúcar e canela, daqueles que nos dá prazer lambuzarmo-nos e carregarmos depois o sentimento de culpa da certeza de mais uns quilos no corpo.

Tinha a mesa posta desde o 24, desde a Noite, a tal, e assim permanecia até ao Dia de Reis. Quem sabe não aparece por aí alguém hoje…, voltava a pensar. E escutava o tiquetaque do relógio de parede, cadenciado nas horas, as completas e as meias, e depenicava uma noz, de quando em vez.

Ela, a outra, cresceu a ouvir o tiquetaque do relógio de parede, que fazia companhia à mesa posta com os sonhos e as filhoses e o arroz doce. Acompanhou, sem grande partilha, uma espera de bocas alegres que tudo comeriam, com gula e satisfação, por entre beijocas repenicadas e o barulho do desembrulhar dos presentes. E os laços no chão. E as fitas.

Por entre os dias, um ou outro alguém ia aparecendo para saborear o doce da época e se regalar com a iguaria servida. Entrava e saía, distribuía sorrisos e prendas, largava uma beijoca e um Até breve! recebido com carinho mas na certeza de um retorno mais largo.

No Dia de Reis é tempo de levantar a mesa e de guardar os sonhos que sobraram; os bons, que os outros já não prestam. Dobrar a toalha e sacudir o açúcar derramado. E não esquecer de acertar o relógio de parede, para que o tempo chegue a horas certas.