quinta-feira, 19 de junho de 2008

Os Mosqueteiros de Rembrandt ou o "J' accuse", segundo Greenaway

A Ronda da Noite (A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq), Rembrandt, 1642, Rijksmuseum, Amesterdão

O filme que mais parece uma peça de teatro, tal é a atmosfera cénica em que vive. Os diálogos, a composição das personagens, a interpretação, recheada de pequenos trejeitos de olhar, de expressões faciais.... As cenas vão desfilando, uma após outra, revelando a humanidade de Rembrandt, no seu carácter algo boémio, na sua relação com sua mulher, Saskia, no seu relacionamento com as mulheres, nas cenas de sexo, bem reais, na crítica à sociedade flamenga, e, também, na linguagem. Mas é a luz, elemento importante nas suas telas, que surge neste filme como um fio condutor, uma linguagem constante. Uma luz pura, teatral, como que filtrada, dá a sensação de estarmos perante a própria obra do pintor, ou, melhor ainda, de nos movermos nos seus próprios palcos. Cenas de exterior, com lençóis brancos secando ao sol, por exemplo, contribuem para esta mesma constância luminosa. Aliás, ao longo de todo o filme, os jogos de luz e sombra fornecem cenários pictóricos de grande intensidade.

A Ronda da Noite, uma das obras mais significativas de Rembrandt, ficou para a posteridade como a obra que acabou por ditar a desgraça do pintor, que - pelo menos na versão ficcionada de Peter Greenaway - terá utilizado este quadro como instrumento de denúncia de um homicídio e, também, de denúncia da hipocrisia dos ricos burgueses de Amesterdão, classe em franca ascensão e que tudo faria para subir na hierarquia social. Esta enorme tela representa uma companhia militar, cujos membros tinham pago, individualmente, a sua representação no quadro. Só que Rembrandt não os tratou de igual forma: através do tratamento da luz e da cor, algumas figuras retratadas ficaram mergulhadas na sombra e outras escondidas por sobreposição. Além disso, nesta obra os intervenientes são representados relacionando-se uns com os outros, interagindo naturalmente, atitude que contrastava com as representações clássicas dos retratos de grupo, em que as personagens olhavam directamente para o pintor que as retrata ou para quem está de fora a observá-los, em pose, perfilados. Retratos de gente bem sucedida na vida. Retratos para a posteridade. Neste quadro, Rembrandt foi acusado de ter produzido uma representação teatral dos envolvidos, logo, no seu entender, menor.

Um filme, que mais parece teatro, que mais parece pintura...

2 comentários:

AGRY disse...

Reunimos o útil ao agradável! Deliciamo-nos com as análises criticas bem conseguidas sobre cinema. Ficamos informados e acautelados para o que se passa nas salas desta cidade.
Passar pelo seu blog não se reduz a um mero ritual.É, cada vez mais, uma necessidade e um exercício de saúde mental.
Gracias

Paula Crespo disse...

Agry,
Obrigada... gentileza sua :)
Bom fim-de-semana!